Vale do Pati: uma travessia inesquecível

Confira esse artigo de Graci Bittencourt relatando sobre sua viagem ao Vale do Pati
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  • Atualizado: 19/10/2023, 01:50h

Foto: Acervo Pessoal


 

Por Graci Bittencourt

Não me lembro qual foi a primeira vez que li sobre a travessia do Vale do Pati, mas penso nela desde meados de 2012. E eis que, quase uma década depois, estou olhando esses morros que tanto vi por fotos. Estou em um dos trekkings mais bonitos do mundo. Sabia que tinha que vir minimamente preparada física e mentalmente. E o fato é que estou. De 2012 até 2022, atravessei muitos processos. Para citar os que mais impactaram na minha demora até chegar aqui no dia de hoje: um diagnóstico dado como sentença de que eu não poderia mais dançar, correr, pular, trilhar, jogar bola, subir escadas ou andar de bicicleta e uma pandemia mundial que me isenta de explicar os danos coletivos e individuais. Em meio a tantos medos e dúvidas, quando sentia esperança, uma das coisas que eu mais dizia era "quando estiver vacinada, eu vou atravessar o Pati". Essa frase era dita em voz alta ou escrita no WhatsApp tantas vezes que virou uma certeza absoluta.

Por falar em certezas, sou uma pessoa que gosta delas. Gosto de pensar que controlo tudo, apesar de saber, racionalmente, que não é bem assim. Mas, uma vez na vida, estou escolhendo não estar no controle. Porque, sim, quando você entra num vale, no coração da Chapada Diamantina, sem sinal de telefone, sem internet, praticamente sem energia elétrica e BEM longe de qualquer hospital, você não está no controle! "E se meu apêndice inflamar?". Pensei no que poderia dar errado por quase dez anos, esperei o momento perfeito e ele deve ter passado por mim inúmeras vezes! 

O momento perfeito existe e não é do jeito que pensamos. Nunca estamos 100% preparados, ao contrário do que eu ficava idealizando. O momento perfeito é quando a vontade e a possibilidade de ir ficam maiores e mais possíveis que o medo de falhar. Os nossos medos sempre vão estar à espreita. Nem que eles esperem a proximidade com um precipício para se manifestar.

Saímos da Pousada em Guiné, povoado próximo à Mucugê, umas 8h da manhã, de carro, em direção à trilha dos Aleixos, por onde começaríamos a subir até o primeiro mirante, antes de adentrar o Vale. Seria apenas um trajeto comum de carro por estrada de chão se a aventura já não tivesse começado com a gente atolando o carro. Não demorou para eu entender que, a partir do momento em que você decide fazer uma trilha desse tipo, ou aceita que os planos não poderão ser engessados em horários e roteiros pré-estabelecidos, ou vai ter que lidar com muita frustração e sofrimento. Ainda bem que conclui isso logo às 9h da manhã do dia 1. 

Passado o sufoco do carro atolado, conseguimos, não sem ajuda de outro grupo, estacionar mais à frente e, finalmente, começamos a subir o morro. Sempre gosto das subidas. Mas já temia ter que descê-la no último dia. O maior desafio do Pati é não pensar muito no que virá e enfrentar pedra por pedra. Subida por subida. Um desafio por vez. A gente vai se surpreendendo quando aprendemos a focar mais nas etapas que já vencemos do que nas que ainda virão. Pouco depois das 10h, nosso carro já era só um ponto lá embaixo e já me parecia impossível pensar que meu corpo tinha chegado até ali. 

Atravessamos os Gerais do Rio Preto e havia uma promessa de tranquilidade naquele ponto. Expectativa alimentada por mim mesma, já que eu sabia se tratar de uma planície. Mas pegamos chuva, sol, calor, frio… Em certo ponto, meu cadarço desamarrou e eu jamais lembraria desse fato, não fosse por alguns minutos depois encontrarmos uma cobra peçonhenta entrando na mata. A gente fica cheio de "se" nesses momentos. "Se eu tivesse amarrado a bota direito antes, teríamos encontrado a cobra de frente?". Cada parada, seja para respirar, lanchar, ajustar o boné, amarrar os sapatos, torcer as meias, era essencial não só pela função bruta da parada.

Depois de caminharmos por esses Gerais de paisagens surpreendentes, tomamos banho num rio simpático no meio do caminho… Seguimos, sem saber muito o que viria pela frente. Não que o nosso guia não tivesse nos mandado o roteiro, mas eu realmente estava focada em pensar: "Vamos subir a próxima pedra. Vamos curtir este momento que é o perfeito agora". Eis que passamos por alguns lajedos e, do nada, demos de frente com uma visão mágica do Vale do Cachoeirão, terceira maior queda d'água da Bahia, de onde pode-se observar até 20 quedas d'águas simultâneas em períodos de chuva. Eu tomei um susto. Não que eu já não tivesse visto essa paisagem por fotos mil vezes, mas fiquei ali bestificada com a paisagem, que as fotos não conseguem traduzir. Contei as quedas d'água e pensei no dia seguinte: estaria lá embaixo, no pé de uma Cachoeira de quase 300m de altura! Imaginei-me deitada no poço em formato de coração observando a água chegar fininha, dançando, em meio às cores, céu, pássaros… Mas, pra isso, tinha que descer até o Pati de Baixo para terminar o percurso do dia e ficar mais perto da entrada dessa trilha. Seguimos descendo pela fenda do Cachoeirão em direção à casa de seu Eduardo, um dos moradores mais antigos do vale.

Bem, se eu estava serena e tranquila com o carro atolado, com o sol, a chuva, as subidas, a descida da fenda veio para me desestabilizar. A chuva engrossou muito e o solo, que antes acolhia nossas pisadas, agora avisava em cada passo escorregadio que não era pra estarmos ali. A primeira queda veio. A segunda, a terceira. E, apesar de ficar aliviada após cada uma ao  verificar que não havia me machucado, a autoestima ia escorrendo junto com o suor que a chuva também lavava e sujava, tudo junto. Mas eu continuava pensando no próximo passo, no momento presente. Meus mantras da Yoga sempre comigo (risos). Ao passo que descíamos, minhas pernas já não suportavam mais as ladeiras íngremes e enlameadas e a única certeza era mesmo a queda. Comecei a descer sentada porque logo ali embaixo da ladeira eu só enxergava um precipício com potencial de ceifar minha vida. Se foi o meu medo aumentando as coisas, eu jamais saberei porque jurei pra mim mesma que nunca mais percorreria aquele caminho. 

Estávamos num grupo de três pessoas contando comigo, eu a única mulher. Fazer trilha com homens é, ao mesmo tempo, um privilégio e um desafio. Comecei a ficar para trás. Para além das diferenças físicas, inerentes ao sexo, diferenças de história de vida e criação. Experiências que, geralmente, são tomadas de nós, por sermos mulheres. Fez falta não ter podido jogar bola na infância, não ter podido me sujar ou subir numa árvore. Comecei a pensar que poderia cair e me machucar feio. Perguntei muitas vezes sobre como seria o resgate com helicóptero, já que a ambulância não chega. As respostas não eram muito animadoras kkkkkk. Comecei a pensar em cobra, em abelhas, em torções, quedas de altura… Queria chorar. Estava perigando escurecer no meio da trilha e, apesar de termos lanternas, você não vai querer trilhar no escuro, no meio da natureza selvagem, sendo um mero morador da zona urbana, acostumado a enfrentar, no máximo, um centro da cidade num dia de sábado atrás de alguma liquidação (e olha que eu nunca enfrentei! kkk).

   Foto: Acervo Pessoal

Comecei a ouvir um barulho intenso. "Tiro não é! São fogos? Que burrice! Seria um crime contra a natureza. Mas que barulho é esse além do barulho do céu que despenca sobre nossas capas de chuva?". Em certo ponto, quando a trilha ficou um pouco mais larga e conseguimos andar sem ser em fila indiana, o Guia me disse que eram barulhos dos galhos das árvores quebrando antes da árvore cair. Que maravilha! Mais um risco que eu sequer havia cogitado. Comecei a pensar se eu odiava mesmo shopping e barracas de praias gourmet. "Às vezes dá pra ser feliz fazendo esses programas. Tanta gente parece se divertir assim e eu tenho que me enfiar no meio do mato? Que enrascada foi essa que eu mesma me meti? Nunca mais eu volto aqui". Quero sentar e chorar. Ficava pra trás. Caio me esperava e eu só conseguia dizer: "Tô com medo. Fica perto". Entramos em partes mais fechadas da trilha. O Guia avisou sobre uma planta que as folhas cortavam a pele como lâmina. Em determinado momento, o caminho só tinha plantas como aquela ou parecidas, e eu simplesmente parei de me importar se eu sairia toda cortada ou picada de mutuca. Só queria chegar em casa.

Íamos andando no meio da mata mais fechada e as plantas e galhos passando nos nossos corpos e rostos. Não sabia se usava o cajado pra me equilibrar ou para abrir caminho. E o choro à espreita. O precipício à espreita. O caminho pra pisar não devia ter 1m de largura e o precipício embaixo. Era tão bonito quanto perigoso. Não há fotos. Não dava para vacilar nesse ponto! O Guia me confortou mostrando um cabo de aço para passar apoiada. Gritei: "E eu lá vou conseguir sustentar meu corpo com uma mão se eu derrapar?". Pode parecer um pensamento trágico, mas uma coisa que eu sei é conhecer meus limites de força física. Musculação, tênis e yoga ainda não são capazes de me permitir ter a força que desejo. Mencionei lá no início que não existe o momento perfeito, né? O peso da mochila que tinha apenas o básico já estava incomodando desde às 9h da manhã. Às 17h, somando tensão e cansaço naturais, eu cambaleava. Precisava parar para as pernas estabilizarem. Para me reequilibrar. Consegui vencer esse dia com muita ajuda. Embora só eu mesma pudesse dar um passo após o outro e me carregar. Mas ninguém trilha sozinho certas jornadas.

Nesse ponto, se tivesse como desistir, eu teria desistido. Teria voltado. Felizmente, não tinha como. Tínhamos passado o dia caminhando e voltar para um lugar seguro (que seria o carro) não era opção. Era mais arriscado que continuar. Sempre tinha mais uma descida e mais uma subida e eu pensava "o pior trecho passou", mas sempre vinha um mais desafiador. Devia ser umas 17h:30min quando nos aproximamos da casa que seria nossa base nessa noite e na próxima. Passamos por algumas mulas que se agitaram demasiadamente e eu não estava acreditando que tinha passado por tudo isso pra levar um coice nos 45min do segundo tempo. "O que é isso? Um filme?". Entre uma cerca de arame farpado e mulas chateadas, passamos com lama nas canelas pelo último desafio do dia. Chovia torrencialmente e eu sentei de mochila e tudo no passeio da casa. Precisaram falar pra eu sair da chuva. Mas eu não me importava. Eu não sabia nem o que eu estava pensando. Agora já não importava a chuva. Os pensamentos se misturavam entre "eu consegui!", com "esse é só o primeiro dia". Agora que já estava segura, podia chorar, mas não queria. Era a única mulher ali e não ia desabar.  

A casa de pau a pique nos acolheu com seu banho gelado no estilo glacial e seu gengi drink, mas o espetáculo à parte ficou por conta das comida feitas no fogão a lenha, com gosto de carinho, misturado com amor… Dormi antes de conseguir refletir sobre os processos que aconteceram durante o dia e sem pensar no dia seguinte. Não havia espaço para mais nada porque vivi uma vida inteira nessa travessia.

Acordamos na expectativa de conhecer o Cachoeirão por baixo. Um dos atrativos que eu mais queria fazer desde que comecei a pesquisar sobre o Vale. Chegamos a fazer uns 5% da trilha, mas, se na noite anterior o solo já estava escorregadio, nesta manhã, tínhamos que trilhar pelas pedras altas no leito do rio. Limo, lama, chuva. Botas ensopadas. Caos. Achamos por bem ouvir o que a natureza estava nos dizendo e desistir. Eu só tinha como ferramenta meu próprio corpo e ele, tão forte para enfrentar longas caminhadas, não parecia ser capaz de vencer uma das trilhas mais difíceis do Vale. Não em dias de chuva pelo menos. Um misto de frustração e agradecimento tomou conta. Estava frustrada, principalmente, por saber que a outra pessoa do grupo demoraria mais pra desistir, mas agradecida porque sabia que estávamos desistindo por precaução e responsabilidade e não por conta de limitações físicas.

Conhecemos os arredores da casa de seu Eduardo, o encontro dos rios Cachoeirão e Pati, vimos a lua nascer imponente por cima dos morros no céu mais estrelado de todos e, no dia seguinte, seguimos rumo à uma casa no Pati de Cima, passando pelo Poço da árvore e outras áreas de contemplação. Pudemos ver o quanto andamos e alcançamos. Nesse ponto, eu ainda tinha certeza que visitar o vale jamais estaria entre minhas opções de lazer e entretenimento. Estava agradecida por ter tido coragem de ir, mas não me sentia compelida a voltar. Não sei muito bem quando essa chave virou. 

Talvez foi entre uma dose de gengi drink e outra, já na casa de Seu Agnaldo. Virei sommelier de gengi drink e apenas uma dose da bebida nessa casa já foi capaz de me deixar inebriada. Noite de fogueira, lua cheia. Faltou um forrozinho. Mas no Pati é assim: ou você vai em épocas de alta estação, encontra as trilhas cheias e movimento de forró à noite, ou encontra as trilhas vazias e tem noites mais tranquilas nas estadias. 

No final de março, ainda fomos presenteados pelo Vale começando a florescer de roxo, com suas milhares de quaresmeiras. Me falaram que no feriado da semana santa, o Vale ainda ganha mais cor, pois o florescimento chega ao ápice.

O dia seguinte era dia de subir o morro da lapinha, conhecido como castelo - um dos atrativos mais famosos e desejados por quem visita. Caiu uma tempestade à noite. Som de pedras rolando, tromba d'água. O rio que tomamos banho na tarde anterior, e que fica a uns 10min da casa, estava agora passando pela cerca da propriedade! Praticamente todos os guias desaconselharam subir o castelo e passamos mais um dia entre trilhas leves, gengi drinks, partidas de dominó e, claro, planejando o roteiro da próxima ida. 

Nesse ponto, já me perco sobre os dias e as noites. Ainda fomos pra mais uma hospedagem e, claro, experimentamos outros gengi drinks kkkk Outro ciclo de céu estrelado, lua nascendo, banhos extremamente gelados, trocas valiosas. Conclui que o mais sensacional sobre Pati não é sobre atrativo X ou Y, mas sobre caminhar. Foi uma delícia aproveitar cada momento sem pressa, mesmo que os momentos de descanso não tenham sido uma escolha, mas uma necessidade. Foi delicioso viver o Patiti, conversar com os moradores das casas, entender como se leva a vida ali, sem carros, shoppings, dependendo das mulas como Uber (e caríssimas as meninas mulas, viu?). 

Achei a subida da igrejinha (última hospedagem) até o mirante do Vale a mais difícil e já não sei dizer se isso foi sobre a dor no quadril e joelhos ou se tudo isso misturado ao pesar de deixar o Vale pra trás. Eu subia e olhava o que estava deixando e o que tinha vivido. Escalava devagar. Queria fotografar na memória cada visual. Esse é o dia que temos mais registros fotográficos. Eu já estava nostálgica. Mas é um engano achar que uma câmera vai conseguir captar exatamente o momento e sensações que sentimos. Nunca me senti tão forte e tão corajosa e isso não aparece em nenhuma foto. No meio de tantas  reflexões, o Pati é um lugar para quem gosta de viver, para se sentir vivo. Para sentir seu corpo e agradecer por cada pedacinho dele. É sobre vivenciar o amor, a tranquilidade. Me dei conta quando cheguei no Vale do Capão que tinha passado 5 dias sem me olhar no espelho, sem me preocupar com minha franja, meu cabelo meio Hermione meio Maria Betânia e sei que nunca estive tão bonita. Tão preenchida de mim mesma. Aqui me senti infinita! 

Até logo, Pati! Eu volto. Para mais luars, pedras, chuvas, desafios, subidas, descidas e claro, gengi drinks. 

                    Foto: Acervo Pessoal


 

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