Assunto exaustivo demais para ser lido sem pesar

  • Laís Sousa

Foto: Imagem da prisão de homem no Rio Grande do Sul/Reprodução

“Jesus não tem dentes no país dos banguelas”, já diziam Os Titãs. Pretos, pobre e trabalhadores continuam sendo oprimidos por brancos e por autoridades pagas para cuidar da população como um todo. Mesmo gravado, estampado, confrontado, o racismo é “investigado”…rs

Para começar o ano pós-Carnaval fui imensamente impactada pelo vídeo amplamente compartilhado nas redes sociais da abordagem da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, que resultou na detenção por “desacato a autoridade” de um motoboy negro, de 40 anos, esfaqueado por um idoso branco, de 71, que, antes de ser detido por pura pressão popular, foi filmado conversando e rindo com os militares para sentar no banco da viatura enquanto o motoboy, vítima de lesão corporal, foi colocado no camburão…

Após esta, me deparei com duas cenas de um jovem negro suspeito de furto que me impactou ainda mais. Em primeiro momento, ele foi entrevistado ao ser detido e depois, sob “custódia da justiça”. Tem tanta informação sobre a máquina de moer gente em que vivemos, exposta de forma tão compreensível quanto cruel em tantos níveis, que me permito ousar na forma de escrita para inserir estes diálogos na íntegra para você “digerir” também:

momento 1

Jovem negro: Pra quem quer comer vale, eu não trabalho em reportagem para ganhar dinheiro, tá ligado? E ninguém bota eu. Quer me botar na reportagem pra mim ganhar dinheiro? eu trabalho com vocês…

Repórter: O mundo do crime é melhor?!

Jovem negro: AH, eu saio do mundo do crime. Eu já não sou nada mesmo…

Repórter: Então é a oportunidade de emprego que falta.

Jovem negro: É. Me coloca, eu aceito qualquer salário…

Repórter: Ser repórter…

Jovem negro: Repórter, para dirigir, filmar. E aí, topa?

Repórter: Quer mudar de vida.

Jovem negro: Ah?! Me coloca aí…

Repórter: Aqui ó, está pedindo oportunidade. Vamos deixar a TV aí para pensar no caso desse jovem que agora vai ficar à disposição da justiça e da audiência de custódia.

momento 2

Repórter: Sofreu alguma lesão?

Jovem negro: (risos) Rapaz, aqui não vai mostrar não né, mas se tivesse câmera no fardamento dos policiais ia mostrar a tortura. Pegaram um pano, tá ligado, uma toalha que eu tinha, e encheram d’água no balde e fizeram eu dormir três vezes. Me acordaram a base do tapa.

Repórter: Entendi… tá certo… Dr. Rafael tem alguma pergunta?

[voz do que entendi como responsável pela delegacia]: Essas tapa ficou marca?

Jovem negro: Não, não, não… não ficou por causa da água né?! Que a água deixa o rosto injiado, com pano. É claro, tudo questão de técnica.

[voz do que entendi como responsável pela delegacia]: O senhor sabe quem foi o policial? Consegue identificar quem fez isso com o senhor?

Jovem negro: Identificar eu identifico, mas eu não vou falar porque a família é grande. Se eu morrer vocês não vão atrás, tá ligado?

[voz do que entendi como responsável pela delegacia]: Tá bom então, obrigado…

Jovem negro: Não dá pra ir atrás. Quem se ferra é quem morre.

Pausa para assimilar e reler, rever…

Racismo. Discriminação. Falta de oportunidade. Violência. Injustiça. Insegurança. Risco. Impunidade. Apatia. Impotência.

Palavras (que não são só palavras, mas atitudes) chave.

Respira…

Como um novo golpe, me veio à mente lembranças de quando, ainda no ensino fundamental, assisti ao filme brasileiro “Quanto Vale ou É por Quilo?” (2005), drama que faz uma analogia entre o antigo comércio de escravos e a atual exploração da miséria (majoritariamente negra, claro) pelo marketing social, que formam uma solidariedade de fachada. Lembrei ainda de ter lido, durante a faculdade, o livro-reportagem sobre um crime que mobilizou a opinião pública brasileira, Bar Bodega, explorando como a violência e a barbaridade (injustamente contra jovens negros, para variar) podem ser amplificadas pelo arbítrio das autoridades e pela ação negligente da imprensa.

Ambas as interações, em âmbito de existência e formação, me deixaram um tanto quanto pesada, ressaltada, amedrontada… do ser, do fazer, do poder.

Fases de vida diferentes, ao persistir e resistir, considero que o impacto é permanente e é exaustivo! Tão cansativo quanto, ao acompanhar o andamento do flagra – porque não vale apenas sofrer o momento, leio que o chefe do Executivo Estadual não descartou a punição dos soldados envolvidos, caso fique provado que houve racismo. - Vocês também tremem ao se deparar com conjunções adversativas? Foi gravado, precisa provar mais o quê? Sem comentar quais medidas podem ser adotadas “se for constatada a má conduta dos soldados”, Eduardo Leite pondera que o episódio não pode “inibir a atuação das forças policiais”. Mais uma íntegra:

“Embora as imagens gerem uma impressão, não podemos fazer avaliações precipitadas. A crítica é que os policiais fizeram a abordagem por conta de um juízo precipitado e, possivelmente, preconceituoso. Não podemos fazer o mesmo. É preciso haver apuração, não cabe fazer punição sumária do caso. A polícia não é infalível, é um recorte da sociedade com suas qualidades e defeitos. Também não podemos descartar o que esses homens e mulheres fazem todos os dias pela segurança. Eles não podem atuar de forma acuada, isso traria consequências à sociedade”, disse durante a entrega das obras do Instituto de Educação General Flores da Cunha, em Porto Alegre.

Não, não é infalível nem perfeita. E ouso dizer que é exaustivamente cheia de falhas e imperfeita na garantia da segurança e integridade física da população, sobretudo negra. As folgas, as confusões, as faltas – especialmente de capacitação e investimento por parte do governo – são tão constantes quanto às obrigações. Desculpa tem, rara é a exceção…

Não, o mundo do crime não é melhor e a falta de oportunidade declarada é apaticamente desconversada, ignorada, contornada. F#da-se essa ideia de que para ser repórter a imparcialidade te permite ser um tanto desumano. Por pauta e ibope uma emissora não perde o coração…

Não, não tá certo, não tá bom. A tortura existe e continua, sem marcas, com técnica, acima de qualquer coerência e razão. O pacto, da branquitude, da “família policial”, não está acima das nossas vidas, não!!!


Laís Sousa

Jornalista-marketeira-publicitária comunicando em redes sociais de segunda a sexta. Escritora e viajante nas horas cheias e extras. Deusa, louca, feiticeira com trilha sonora em alta. Leitora, dançarina e pitaqueira por esporte sorte. Vamos fugir!
@laissousa_
laissousazn@gmail.com

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