45 anos depois, a obra de Zé Ramalho ainda prova que o povo brasileiro vive uma vida de gado

  • Danilo Souza

Em 1979, quando o Brasil enfrentava aqueles que seriam os anos finais da Ditadura Militar, o artista paraibano Zé Ramalho lançou a faixa Admirável Gado Novo, presente em seu segundo álbum de estúdio, “A peleja do diabo com o dono do céu”, gravado em um contexto em que a censura já não era tão rigorosa como nos governos antecedentes. Com referências ao livro distópico “Admirável Mundo Novo”, escrito pelo britânico Aldous Huxley, a letra da canção traz críticas à passividade social e a conformidade das pessoas diante de um regime ditatorial que, naquele momento, já estava em vigor há 15 anos. 

Admirável Mundo Novo: A inspiração 

“Admirável Mundo Novo” foi publicado originalmente em 1932. Com uma história ambientada em Londres, no ano de 2540, o livro aborda sobre um mundo com pessoas programadas em laboratórios para cumprir as suas funções, que são definidas já a partir do nascimento de cada uma delas. A distopia, a manipulação psicológica e a hipnopedia - a prática de tentar transmitir informações para uma pessoa adormecida, geralmente por meio de uma gravação sonora - são a base do romance de Huxley, que é considerado uma das grandes obras distópicas juntamente com “1984”, de George Orwell, e “Fahrenheit 451”, escrita por Ray Bradbury, por exemplo.

Em um enredo onde os seres humanos são divididos em castas, o autor trata os que fazem parte da mais baixa delas apenas como serventes que realizam todo o trabalho pesado, sem reclamar ou ao menos ter consciência sobre como a situação é injusta. Com um modelo semelhante, inspirado nas castas, Zé Ramalho compara a classe mais baixa com gados, que, de modo certo, são ensinados a obedecer aos seus donos, ainda que de forma inconsciente.  

Ê, ê, ô, vida de gado…

A mensagem da letra é um discurso direcionado ao ouvinte. Aqui, o autor não se apresenta como um personagem e sim como uma pessoa que está observando de fora todo o movimento de uma massa manipulada, formada por cidadãos que obedecem o que lhes é dito sem questionar ou se opor, estando fadada a trabalhar e construir com as próprias mãos os projetos do futuro para os seus líderes, enquanto se acomodam a receber bem menos do que eles mesmo produzem. 

Já a referência “povo marcado” vem da prática realizada com gados em fazendas, onde há o hábito de marcar o animal com um instrumento de metal que é aquecido e posto na pele do animal, deixando uma marca que facilita a identificação e organização do rebanho. No contexto da faixa, as pessoas convivem com uma falsa sensação de felicidade por tudo parecer estar sob controle quando, na verdade, fazem parte de um rebanho e estão apenas fazendo algo que foi coordenado por outras pessoas, favorecendo, sem nem perceber, os líderes que os manipulam.  

“Ê, ô, ô, vida de gado

Povo marcado, ê!

Povo feliz!”

Admirável Gado Novo e os dias atuais

Em 2021, após mais de quarenta anos do lançamento de Admirável Gado Novo, os versos da canção fizeram parte de uma questão no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), no caderno de Ciências Humanas, reforçando a crítica a respeito da passividade social - a resposta correta, no contexto da questão.

Reprodução: G1

Um ano antes das eleições de 2022, um dos períodos mais conturbados da história recente do país e que ficou marcado por temas como a polarização partidária, Zé Ramalho comentou ao portal G1 que o fato da sua canção continuar sendo discutida depois de tantos anos “é uma prova de que essa letra contém situações sociais e políticas atualizadas, acho que para sempre. Desde que o conceito de 'atualizada' refere-se à situação também 'para sempre' do povo brasileiro”. 

E não é exagero. Depois de 45 anos, a obra de Zé Ramalho ainda prova que o povo brasileiro vive uma vida de gado. Os grandes líderes possuem o controle de seus rebanhos, que os seguem por onde for e obedecem tudo aquilo que é dito sem se opor, com a idolatria e a falta de consciência acima de tudo e de todos. Pois é, Zé, a mensagem da sua música realmente vai ficar mesmo para sempre e acho que nem assim seremos capazes de entender. “Oh, boi, oh, boi, eh, boi…”


Danilo Souza

Estudante de Jornalismo pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), músico e produtor audiovisual independente.

danilosouza.jornalismo@gmail.com (Email)
@danilosouza.jornalismo (Instagram)

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