Atuação quase militar e abordagens da Guarda Municipal são assuntos de entrevista com a vice-presidente da Comissão dos Direitos Humanos da OAB de Conquista

A Dra. Emanuelle Soares, advogada e vice-presidente da Comissão dos Direitos Humanos. Foto: Arquivo pessoal
  • Danilo Souza
  • Atualizado: 28/05/2024, 10:27h

A Guarda Municipal de Vitória da Conquista foi instituída em 2019, sob a lei n° 2.369 de 23 de dezembro daquele ano. O art. 2° dessa lei diz que a Guarda Municipal tem por finalidade “planejar, coordenar e executar as ações e as atividades de prevenção à violência, proteção e valorização do cidadão e da proteção patrimonial dos bens, serviços e instalações do Poder Público Municipal”. No entanto, desde então, a Guarda Municipal tem tido características quase militares, seja na estética ou mesmo na forma de atuar, como o uso de roupas camufladas em pleno centro da cidade, divisões em agrupamentos e patrulhamento ostensivo, inclusive com abordagens.

Entre maio de 2023 e maio de 2024, dois episódios de abordagem violenta marcaram a atuação da Guarda Municipal. O primeiro contra adolescentes próximo a uma escola no Bairro Patagônia, onde Guardas Municipais foram acusados de abordagem violenta a estudantes; o mais recente aconteceu no início de maio, quando Guardas Municipais foram acusados de ir até a casa de um homem após discussão no trânsito e agredi-lo com um pedaço de madeira. Nesse último episódio, dois Guardas Municipais foram afastados.

A equipe de Jornalismo da Mega Rádio conversou com a Dra. Emanuelle Soares, advogada e vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB de Vitória da Conquista, para discutir a atuação desse braço da segurança municipal.

Mega: Em um intervalo de um ano, dois casos de agressão relacionados à Guarda Municipal aconteceram na cidade. Em maio de 2023, estudantes da Escola Municipal Milton Santos acusaram a GM de ter realizado abordagens violentas. Já em 2024, aproximadamente um ano depois do primeiro caso, um homem foi agredido após uma discussão de trânsito. Quais são as punições para este tipo de conduta apresentada pela Guarda Municipal? Ela pode se enquadrar, também, como uma situação de abuso de autoridade?

Dra. Emanuelle Soares: As punições para eventuais condutas violentas da Guarda Municipal podem incluir sanções penais, com cumprimento de pena em caso de condenação definitiva; sanções cíveis, com a obrigação de indenizar pelos danos causados a terceiros; e sanções administrativas, aplicadas pela corregedoria da instituição, que exerce controle interno e pode aplicar advertência, suspensão ou demissão, conforme o caso.

Quando nos referimos à expressão “abuso de autoridade”, estamos falando da responsabilização no âmbito criminal dos agentes públicos no exercício da sua função. Se restar provado em procedimento investigatório que os agentes agiram em excesso ao poder que lhes é conferido legalmente, há a possibilidade que os atos se configurem como crime de abuso de autoridade. Além disso, ainda no âmbito penal, os guardas envolvidos podem ser processados por lesão corporal e até mesmo tortura, se houver comprovação de que a violência foi deliberada e intencionalmente infligida para causar sofrimento.

Mega: As agressões causadas por funcionários de uma instituição pública contra a população ferem direitos humanos e de cidadania. Há algum artigo em específico que tenha sido infringido nestes casos?

Dra. Emanuelle Soares: Sim. Em tese, violam diversos direitos consagrados na Constituição Federal, principalmente no artigo 5º, que assegura o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Em casos de violência estatal, é possível verificar especificamente violações do direito à integridade física e psicológica (artigo 5º, III: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”) e do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III), um dos pilares do Estado Democrático de Direito.

Mega: Segundo a Lei de Implantação da Guarda Municipal (Lei nº 2.369, de 23 de dezembro de 2019), a GM tem como algumas das suas funções o planejamento, coordenação e execução das ações e atividades de prevenção à violência, além da proteção e valorização, tanto dos cidadãos, quanto de bens. É possível perceber um processo de militarização no modelo de atuação da Guarda, tanto em questões de estética, quanto de abordagem, com estes casos?

Dra. Emanuelle Soares: Na prática, há um movimento crescente de militarização das Guardas Municipais, inclusive no que diz respeito às vestimentas e, por vezes, até na denominação como “polícia municipal”, sendo comum no cenário jurídico a sua atuação em atividades ostensivas ou investigativas típicas das polícias militar e civil. Essa constatação traz uma certa preocupação, pois, ao contrário das polícias civil e militar, as Guardas Municipais, em tese, não estariam submetidas a um controle rígido externo do Ministério Público, estando somente sujeitas à subordinação dos respectivos chefes do Executivo Municipal, o que pode colaborar para o aumento da violência institucional e abusos de poder.

O reconhecimento da legitimidade de suas atribuições como órgão policial, no entanto, é um tema que ainda gera insegurança jurídica. Há um intenso debate no Poder Judiciário sobre a natureza da Guarda Municipal e os limites de suas atribuições. A discussão se dá, porque o legislador constituinte não incluiu a Guarda Municipal no artigo 144 da Constituição Federal, que especifica os órgãos de segurança pública, listando apenas as diversas polícias federal, civil, militar, entre outras.

Em relação às guardas, a Constituição Federal prevê sua finalidade como a proteção de bens, serviços e instalações municipais. No entanto, na prática, a atuação das Guardas Municipais tem frequentemente excedido essas atribuições constitucionais, o que tem sido refutado reiteradamente pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Para esta Corte, as guardas podem realizar patrulhamento preventivo na cidade, mas sempre vinculados à finalidade específica de tutelar o patrimônio municipal e não de reprimir a criminalidade urbana ordinária, função esta cabível apenas às polícias. Como resultado, diversos processos criminais ao longo dos últimos anos tem sido objeto de anulação, em razão do reconhecimento da ilegalidade de diversas apreensões por desvio de função.

Em agosto de 2023, o Plenário do STF decidiu, por maioria, na ADPF 995/DF que as Guardas Municipais integram o Sistema Único de Segurança Pública, declarando inconstitucionais interpretações que as excluem desse sistema. No entanto, o STF não definiu claramente os parâmetros de atuação dessas guardas, considerando que o rol do artigo 144 da Constituição é exemplificativo e não exaustivo.

Apesar dessa decisão, o STJ tem mantido o entendimento de que as Guardas Municipais não podem exercer funções das polícias civis e militares, limitando sua atuação à proteção do patrimônio municipal. Para o STJ, as guardas são órgãos de segurança pública sui generis e, embora parte do sistema de segurança, não são órgãos de polícia. Assim, atividades como a investigação de crimes sem relação com bens municipais estão excluídas de suas atribuições. No entanto, o STJ admite, em casos excepcionais, a busca pessoal realizada por guardas municipais, desde que tenha relação direta com a defesa patrimonial do município.

Em abril deste ano, no julgamento da Reclamação Constitucional 62455/SP, o Ministro do STF Flávio Dino derrubou uma decisão do STJ que anulava uma condenação por roubo baseada em abordagem da GM, afirmando que a GM pode realizar busca pessoal, pois possui poder de polícia. Essa decisão sinaliza uma possível mudança de entendimento do STF, mas não reflete a posição final da Corte, pois foi proferida monocraticamente. A Reclamação será apreciada pelo plenário do STF posteriormente, quando haverá um posicionamento definitivo sobre o tema.

Mega: De que maneira as vítimas podem agir de maneira legal em casos como estes? Elas têm direito a algum tipo de indenização financeira por danos morais, por exemplo?

Dra. Emanuelle Soares: As vítimas podem agir legalmente registrando boletim de ocorrência na polícia e iniciando processos criminais contra os guardas envolvidos. Também podem apresentar denúncia ao Ministério Público, que tem o dever de investigar e propor ações penais.

No âmbito civil, as vítimas podem ingressar com ações de indenização por danos morais e materiais contra o Município, onde será apurado o abuso de poder. Quando nos referimos à expressão “abuso de poder”, trata-se da apuração e análise da conduta dos agentes públicos, investigando tanto o excesso de poder, quando o agente atua além de suas competências, quanto o desvio de poder, quando o agente usa sua autoridade para fins diversos dos previstos pela legislação.

A responsabilidade civil do Município é objetiva, conforme o artigo 37, § 6º da Constituição Federal, o que significa que não há apuração de dolo ou culpa. Ou seja, a vítima deve apenas provar a extensão do dano e o nexo de causalidade com a ação dos agentes públicos. As indenizações financeiras podem incluir compensações por danos físicos, psicológicos, perda de renda, despesas médicas e outras perdas sofridas em decorrência da agressão.

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