Sonho, Sangue e América do Sul

Quem é você? Dia desses eu estive em um evento em que a primeira coisa que se pedia aos participantes é que eles se descrevessem em três palavras. Fiquei pensando nas coisas que consideramos importantes que os outros saibam sobre nós. Na semana passada, falei um pouco sobre como nossas relações interpessoais são importantes para nossa saúde mental. Hoje eu gostaria de falar mais um pouco sobre isso, mas direcionando para importância de fazer parte de grupos aos quais nos sentimos pertencentes. E sobre como este pertencimento recai muitas vezes em identificação.

Vejam minha apresentação na coluna: “psicóloga, baiana, feminista”. Três informações que se referem a grandes e diferentes conjuntos. Para citar apenas uma parte desta complexidade, estes conjuntos englobam: conhecimentos, influências, experiências compartilhadas por e dentro de um grupo regional,  formas de pensar e agir. A própria escolha destas palavras é fruto de minha própria vivência. Eu poderia me descrever de forma mais ampla como “nordestina”, o que aos olhos de pessoas de outras regiões poderia parecer o mesmo. Mas ao dizer que sou baiana eu abro espaço para que meus leitores que são deste estado (ou conheçam bem ele) tenham uma compreensão ainda mais ampla de minhas referências. Se eu especificasse como “do sudoeste baiano” é provável que isso trouxesse ao leitor ainda mais referências, e talvez fizesse ainda menos sentido para um indivíduo de fora.

Em um mundo globalizado, nossas experiências podem até serem vistas e compartilhadas com o mundo todo, mas dificilmente terão o mesmo sentido para todos que as acessam. Em estudos da Psicologia sobre cultura tem sido comum a sinalização de produzir conhecimento que vá além daquele produzido pelos países “WEIRD”( Western, Educated, Industrial, Rich, and Democratic). A sigla em uma tradução literal refere-se aos países ocidentais, escolarizados, industriais, ricos e cujo governo é baseado na democracia. Em outras palavras, muito do nosso conhecimento é produzido por países ditos “de primeiro mundo”, cuja experiência não deveria ser universalizada para qualquer cultura que não faça parte deste grupo.

É mais do que a produção de conhecimento. É como tudo isso influencia nossos gostos. O quanto nos vemos nos lugares e nas coisas que consumimos. E no que nos é vendido para o consumo também. Eu não acho estranho que para algumas pessoas seja mais fácil consumir produtos estadunidenses do que produções culturais sul-americanas. Apesar de nós brasileiros termos a mesma localização geográfica e o mesmo passado de colônia de outros países latino-americanos, a experiência não foi a mesma. Nos conectamos em algumas coisas, mas nos distanciamos em outras. Curioso como o que nos conecta reside muitas vezes em como somos vistos como “outra coisa” aos olhos do norte-global.

Imagem: Reprodução. Cena retirada da série “Modern Family”.

A fala da personagem Glória traz outras questões relevantes para discussão sobre identidade e pertencimento. Voltemos a minha apresentação. Existem outros elementos importantes na maneira como escolhi me apresentar, principalmente nas minhas escolhas do que não definir. Eu não falei sobre cor de pele. Para quem vê a minha foto faz sentido, eu pertenço a uma comunidade lida como branca e que goza de privilégios sociais associados a este fenótipo. Eu não falei sobre sexualidade. E daí para um leitor LGBTQIAPN+ isso talvez já soe como um alerta de que eu não faço parte desse grupo minoritário. O que silenciamos sobre nós também é derivado de nossa cultura e meio social, os quais nos ensinam direta e indiretamente sobre o que é relevante.  Uma mulher negra e lésbica talvez visse como necessário se declarar assim porque ela sentiu na pele como estes marcadores são importantes. E eu e qualquer outra psicóloga(o) branca(o) e heterossexual cometeríamos um erro gravíssimo ao negligenciar estes fatores para aqueles que atendemos somente porque a experiência é diferente da nossa.

Tavares e Kuratani (2019) discutem a importância dessa visão interseccional no cuidado da saúde de mulheres negras. As autoras sabiamente apontam uma diferença na literatura nacional da internacional no que se refere ao uso de “etnia” e “raça”. Em nosso país, local onde a cor de pele (racialização) é mais utilizado como referência para tratamento do que os grupos e cultura nos quais estamos imersos (etnia), faz sentido utilizar mais o termo raça. Fico pensando até no termo “enegrecer” e seu uso no Brasil. Realçar traços é comprometer-se com o grupo com o qual se identificam e usá-los com orgulho é mostrar que o combate ao racismo se faz ao mesmo tempo em que se destacam as potencialidades do povo racializado.

Após meu último texto (você pode encontrá-lo aqui), fiquei pensando como as sitcoms até pouco tempo não se preocupavam muito com representatividade. É uma coisa nova e que vem justamente de como muitas pessoas corretamente não aceitam mais consumir algo em que não se veem. Lá eu também propus em exercício que vocês pensassem em grupos dos quais sentiam-se parte. Não foi por acaso: mais do que fazer parte de grupos é saudável que nos sintamos pertencentes a eles. Muitas vezes nossos conflitos e sofrimentos estão ligados a não sentirmos que somos incluídos por nossos pares, ou por tentativas falhas de nos encaixarmos a algum grupo. Sentir-se é individual, mas a nossa necessidade de sentir que fazemos parte de algo e nos relacionarmos com isso é universal.

Belchior em uma de suas canções uma vez disse que “um tango argentino” lhe caia “bem melhor que um blues”. Era mais do que uma pista de um gosto pessoal. Era um jeito de ressaltar que se identificava e gostaria de destacar  e aproximar-se de suas origens latinas. E você? Qual tua relação com o mundo em que você vive? Qual é o mundo ao qual você quer pertencer? Quem são as pessoas com quem você pode contar para chegar lá?

Imagem: Reprodução. Cena da série “Brooklyn 99”

Fica aqui minha homenagem ao ator Andre Braugher que faleceu essa semana aos 61 anos. O mundo é um lugar melhor quando alguém se orgulha por ser quem é. Obrigada, capitão.

Tavares, J. S. C., & Kuratani, S. M. de A.. (2019). Manejo Clínico das Repercussões do Racismo entre Mulheres que se “Tornaram Negras”. Psicologia: Ciência E Profissão, 39, e184764. https://doi.org/10.1590/1982-3703003184764


Maiana Pereira

Psicóloga, baiana, feminista e palestrinha que ama dar um pitaco. Falo sobre os cotovelos sobre tudo que me move. Sou daquelas que a vida tem uma trilha sonora própria. Quero saber mais, ouvir mais, ver mais, ler mais, ver como cada contexto se relaciona. Vem comigo?
Conheça também meu site https://www.maianapereirapsi.com/

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