Alunos simulam uso de droga com corretivo e preocupam pais e profissionais da saúde
Corretivo escolar - Foto: Pexels
A vida, às vezes, imita a arte de forma desastrosa. Vídeos apelidados de “Desafio Euphoria”, em alusão à série sobre comportamento adolescente na HBO, circulam nas redes sociais e têm levado alunos de escolas públicas e privadas a se drogarem com substâncias até então inofensivas, como corretivo, giz e cola.
A preocupação cresce entre pais e especialistas que já veem no fenômeno mais uma porta de entrada para o consumo de drogas ilícitas. Casos de estudantes flagrados se drogando soaram o alerta de escolas, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste, e de secretarias de Educação pelo país.
Manipulado pelos estudantes, o corretivo foi usado como pó em pelo menos oito escolas estaduais do Paraná. Em Cascavel, o Colégio Estadual Padre Carmello Perrone chegou a proibir o uso do produto, conhecido como “branquinho”, para evitar que fosse cheirado pelos alunos.
O fato foi informado ao Núcleo Regional de Educação. A direção de uma escola estadual de Camaquã, no Rio Grande do Sul, chamou atenção para a disseminação de “cocaína de errorex”, outra forma de identificar a substância, após flagrar alunos consumindo o pó.
Localizada pelo GLOBO, a estudante K., de 18 anos, que está no terceiro ano do Ensino Médio, preparou pó de corretivo dentro de sala de aula e publicou o vídeo em suas redes sociais. No rastro da popularização do consumo dentro do ambiente escolar, ela teria feito, em suas palavras, uma “brincadeira”.
— Foi zoação, porque muita gente estava fazendo no Tik Tok — disse a aluna, que estuda em um colégio da rede estadual da Bahia e pincelou o produto na mesa e, após secar, o esfarelou com uma régua. — Sei que é errado cheirar e nunca faria isso.
Um aluno de 12 anos, que faz o 7º ano do Ensino Fundamental, contou para o jornal ter realizado o que está sendo chamado na internet de “trend do corretivo”. Sem querer informar o estado em que mora, o menino, que não será identificado em cumprimento ao que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), confirmou que preparou o “pó” com dois colegas de turma, mas que só um deles teve coragem de inalar:
— A gente sabe que faz mal. Meu amigo disse que o nariz ardeu e ficou espirrando, mas não contamos para os nossos pais.
O “Desafio Euphoria” é facilmente encontrado em vídeos gravados nos intervalos das aulas, nos banheiros ou nas salas das escolas. A exibição das cenas de consumo de drogas, ainda que não ilícitas, deve ser levada a sério. A doutora em saúde mental Janaína Soares, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Enfermagem em Adições, afirma que há uma tendência de crescimento do uso de ingredientes, cujos efeitos narcóticos são pouco conhecidos, em razão de problemas psicossociais, inclusive agravados pela pandemia.
— Quando inaladas, as substâncias são rapidamente absorvidas pelo pulmão e vão para o sistema nervoso central, gerando alucinações, lentidão do pensamento e alterações da memória. Esses prejuízos podem levar a déficit escolares, além de intensificar sintomas de ansiedade e depressão — explica Janaína.
Segundo Renato Roithmann, presidente da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial, os solventes utilizados em certas substâncias podem não só irritar as mucosas nasais como, se ingeridos em maior quantidade, afetar o funcionamento de rins, fígado, medula óssea e sistema nervoso central por toda a vida. Além do corretivo, há relatos de consumo de esmalte, acetona, thinner, giz e cola.
— Esses produtos podem gerar reações locais como crise de espirros, congestão nasal e, nos casos mais extremos, sangramento nasal e alteração do olfato. Pode haver piora da rinite e de infecções, como sinusite. A chegada aos brônquios e pulmão pode resultar em crise de asma e pneumonia. O uso continuado pode gerar danos irreversíveis, como perda motora — diz o especialista.
Um outro alerta é para a possibilidade de o usuário eventual evoluir para o consumo de drogas ilícitas. Após o longo período de isolamento devido ao avanço da Covid-19, a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (Pense), do IBGE, prevê agravamento dos dados sobre consumo de drogas. O último levantamento de 2019 apontava que 13% dos alunos entre 13 e 17 anos já tinham usado maconha, cocaína, crack e ecstasy.
É por isso que um colégio de São Paulo convocou os pais depois do caso de uma criança de 11 anos cheirando “pó de corretivo” dentro da instituição. Uma das mães convocadas foi a blogueira Ana Paula Porfirio, de 41 anos, que ficou assustada porque o aluno era colega de sala de um de seus filhos — um menino de 11 e uma adolescente de 14 anos, que sofre de transtorno de ansiedade. Ela relata que a mãe do aluno pego com corretivo em pó ficou muito abalada:
— Fomos avisados de que o menino fingia usar cocaína. A diretora alertou que era uma situação delicada e que tínhamos que prestar atenção ao comportamento dos nossos filhos nas redes sociais. A droga acaba sendo inserida na vida deles de uma forma ou de outra. Precisamos estar atentos para orientar e esclarecer sobre o assunto.
Nas Diretrizes da Comunidade do TikTok — onde a maior parte dos vídeos é postada —, é observado que conteúdos com menção explícita, apologia ou imitação ao uso de drogas não são permitidos. Contudo, imagens da “trend do corretivo” seguem disponíveis no aplicativo, compartilhados por perfis de estudantes e menores de idade. Procurado, o Tik Tok disse apenas que está comprometido com a segurança da comunidade e que trabalha para identificar e remover conteúdos e contas que violem as regras.
Enquanto isso, a jovem S., de 14 anos, busca satisfazer sua curiosidade e amenizar as dores de problemas familiares no torpor provocado pelo pó de corretivo. Ela disse que já inalou a substância três vezes na escola, após ter visto o vídeo de uma amiga. Em uma das experiências, ela lembra de ter sentido tontura, além de ardência no nariz. A estudante conta que experimentou a substância junto de um colega.
— Achei boa a tontura, só achei ruim o nariz arder. Na primeira vez, eu fiquei com o nariz coçando muito, mas passou em dez minutos — relata a estudante, definindo a sensação toda como “brisa” .
No campo jurídico, a advogada Taís Pagy de Amorim, do Núcleo de Práticas Jurídicas do Curso de Direito da Unigranrio, aponta que tanto as escolas quanto os próprios pais podem ser responsabilizados por danos morais e patrimoniais, inclusive arcando com despesas de eventual tratamento de saúde.
O Globo