Lei Maria Flor: quando o processo do luto se transforma em acolhimento à mães enlutadas nos hospitais de Vitória da Conquista

“A dor do luto é proporcional à intensidade do amor vivido na relação que foi rompida pela morte, mas também é por meio desse amor que conseguiremos nos reconstruir” – Ana Claudia Quintana Arantes
  • Ane Xavier
  • Atualizado: 27/05/2024, 02:01h

A dor do luto é dilacerante, cruel e persistente para qualquer pessoa que perde um ente querido. Para as mães que perdem seus filhos durante a gravidez ou logo após o nascimento, essa dor é acompanhada pela quebra de expectativas criadas ao longo de todos os meses de gestação.

A idealização do quarto perfeito, o enxoval de roupas, a compra de fraldas e brinquedos, os primeiros passos... Tudo isso é interrompido. E, em muitos casos, a dor não é apenas emocional, mas também intensificada pelas circunstâncias nos hospitais. Muitas dessas mães que estão enfrentando o luto de seus bebês são colocadas na mesma sala na qual outras mães acabaram de dar à luz seus filhos saudáveis. Em vez de terem um espaço reservado para lidar com sua perda, essas mães enlutadas são forçadas a confrontar diretamente a felicidade das outras, intensificando ainda mais o seu sofrimento.

Após passar por um luto gestacional e não se sentir acolhida no leito de maternidade depois de perder o seu bebê, Suzala Reis, professora de história e estudante de psicologia, em parceria com o seu marido, idealizou em Vitória da Conquista a Lei Maria Flor, que carrega o nome da sua falecida filha. De acordo com informações do site da Prefeitura, esta legislação reserva 10% dos leitos das maternidades do município para o atendimento de mães de natimortos ou que tenham tido óbito fetal. Além da reserva de leitos, a lei determina que esses espaços tenham uma arquitetura, organização, decoração e localização que preservem a dignidade das pacientes. Também, para essas mães, é garantido o atendimento preferencial do serviço de psicologia das unidades hospitalares.

Entretanto, para Suzala, não basta apenas um quarto reservado, mas um ambiente que acolha o luto para que ele possa acontecer de forma adequada. “O primeiro momento ali (no leito) tem que ser um momento de acolhimento. (...) Infelizmente, muitos profissionais ainda não têm capacitação para lidar com esse tipo de situação, então é preciso que a gente veja a parte física do lugar, a parte que acolhe aquela mãe e aquela família que perdeu o seu bebê. E que seja um espaço de serenidade, porque o momento pede, é um momento realmente muito duro”.

Suzala ainda ressalta que a criação da Lei Maria Flor foi uma maneira de enfrentar o seu luto e transformar a sua dor em ação. Ela conta que, durante o seu intenso processo de luto, toda a sua vida foi repensada. A partir da sua perda, ela teve que escolher “quais bandeiras levantar”. A bandeira principal que ela carrega é a da Maria Flor. A lei é uma forma de não deixar a sua filha cair no esquecimento e de dar visibilidade à dor de mães que muitas vezes têm o seu luto descredibilizado.

“Minha filha estava dentro de mim. Muitas vezes, esse é um luto não reconhecido. O outro não viu a minha filha, só me viu grávida. (...) Muitas mães que sofrem perdas de semanas, dias, muitas vezes são ignoradas pela sociedade, porque parece que aquela mulher não pode viver um luto tão pequeno”, relata.

Enfermaria Maria Flor, do Hospital Esaú Matos. Foto: PMVC/Reprodução

A importância da Lei Maria Flor para mães enlutadas

Alana Silva, mãe que sofreu a perda de três filhos, compartilhou a sua experiência sobre duas perdas gestacionais e uma neonatal em entrevista para a Mega Rádio. Ela contou que as duas perdas gestacionais aconteceram com 19 semanas (a primeira) e com 16 semanas (a segunda). Já a perda neonatal aconteceu a partir de um nascimento prematuro, quando a criança chegou a ficar quatro meses na UTI Neonatal.

Durante esses processos de luto, Alana precisou dividir quartos com mães dando à luz seus filhos com vida e amamentando, enquanto a equipe hospitalar solicitava os recém-nascidos para o banho. "Isso contribuiu para uma soma de dores, onde pode ocorrer uma soma de dificuldade até no processo de luto. É uma dor que não há como ser retirada de uma mãe, mas que pode ser amenizada, ser acolhida e não somada em um momento onde nos encontramos em vulnerabilidade," explica.

Ela descreve sua própria experiência de perda como a fase mais difícil de sua vida. "Eu, que nunca havia tomado nenhum soro na veia, me vi de forma muito rápida escutando da médica que eu não havia mais líquido amniótico e que meu filho provavelmente não resistiria. Meu mundo desabou naquele momento e minha vida mudou por completo. Entrei na maternidade com meu filho em meu ventre e saí de lá de braços vazios. Não há dor maior do que perder um filho, pois junto foi um pedaço de mim, cada mêsversário sonhado, a festa de um ano, o primeiro São João na roça e dentre uma vida inteira que planejamos e imaginamos quando descobrimos uma gestação," desabafa Alana.

Ela compara passar pelo luto a atravessar um deserto, com dias frios demais e dias quentes demais. "Eu cheguei a me perder na rua, a não saber onde eu estava. O luto é um processo que não é linear e você tem duas escolhas a fazer: viver de luto ou viver o luto. Eu escolhi viver o luto, para que eu não vivesse de luto a vida inteira" afirma Alana.

Segundo Alana Silva, é fundamental ter um ambiente separado para as mães que estão passando por um processo de aborto ou que tiveram um óbito fetal. "É importante ter um espaço onde se possa simplesmente acolher aquela mãe, aquela família, e deixar que os processos aconteçam de forma natural," afirma Alana.

Ela ressalta a grande diferença que faz quando a mulher é acolhida por profissionais treinados e capacitados, que compreendem que não se trata apenas de um bebê, de um feto de 8 semanas, 20 semanas ou 40 semanas. "Não é só um bebê que ainda não saiu do ventre da mãe, que ainda não teve contato com a família. É uma vida. É o amor de alguém, o amor daquela família que tanto desejou, que tanto sonhou, que tanto amou e esperou," destaca.

Alana explica que, independentemente da idade gestacional, todo o processo é significativo. A diferença entre existir apenas um espaço e um espaço acolhedor está no preparo e na empatia dos profissionais. "Quando há esse conhecimento e compreensão, o tratamento é diferente. Lá na frente, aquelas famílias poderão recordar que seu filho foi amado, foi amado por elas e pela família. Foi cuidado e respeitado", relata.

Perspectiva profissional e o valor do acolhimento

O luto é uma experiência profundamente complexa, especialmente para mães que perdem seus filhos. A psicóloga Teresa Gouvêa, especialista em luto, explicou, em entrevista, os desafios psicológicos que essas mães enfrentam e como a adaptação se torna uma parte essencial do processo de luto.

Teresa Gouvêa destaca a solidão que muitas pessoas sentem durante o luto. "A rede de apoio é fundamental, né? A solidão do luto é imensa. As pessoas que eu atendo vêm justamente dessa solidão, elas se sentem muito sós. Por quê? Porque a sociedade, culturalmente, coloca um tempo para a dor, mas não existe um tempo para a dor”.

A psicóloga afirma que não vê o processo de luto como uma série de desafios, mas sim como uma constante de renascimentos diários. “Esse é o principal, né? Essa coragem de levantar todos os dias. Porque todos os dias é um recomeço. Hoje, a gente nem fala mais em término do luto, né? Falamos em adaptação. Pode ser que uma mãe fique enlutada até o último dia da vida dela, pode ser que ela nunca aceite a morte de um filho, e isso não está errado”.

Ela conta que os pequenos recomeços diários, para ela, são os maiores desafios de uma mãe enlutada. Essa ressignificação pode ser percebida em pequenos detalhes do dia a dia, por exemplo, e não em grandes transformações repentinas. "O que eu digo para as minhas clientes é: se você abriu a janela, se você esticou o lençol da cama, isso é um recomeço. Então, fique muito atento aos detalhes, porque eles acontecem. Os recomeços acontecem nos detalhes."

A terapia é um espaço fundamental para acolhimento e ressignificação, permitindo que a pessoa enlutada encontre novas maneiras de se conectar com o ente querido falecido. "Eu não tenho que esquecê-la, eu não tenho que deixar de falar dela. Eu posso falar de alguém que eu amo até o último dia da minha vida e tá tudo certo".

Além da terapia, há também uma rede de apoio composta por familiares, amigos ou grupos que desempenha um papel crucial no processo de luto. Teresa Gouvêa explica que essas redes são fundamentais para proporcionar suporte e acolhimento. Ela ressalta que essa rede é um lugar de partilha e de pertencimento.

"Tudo isso é suporte, e principalmente a escuta, de acordo com a necessidade do outro. Eu não vou lá para falar de mim, nem para fazer perguntas, eu vou lá para ouvir se o outro quiser falar".

Gouvêa prefere o termo "ressignificação" a "estratégias" para lidar com a perda. Ela acredita que a melhor forma de lidar com a dor é buscar a restauração gradualmente. "Eu trabalho o dia inteiro, mas aí eu chego em casa e choro. Tá tudo certo. Eu acho que a gente vai vendo que está tudo bem quando a restauração é maior que o luto, que a dor. Porque, já que se oscila entre os dois, na medida em que a dor diminui e a restauração aumenta, isso quer dizer que está dando tudo certo".

Na parede do leito Maria Flor, do Hospital Esaú Matos, está escrito que “mãe é palavra que não conhece passado”. Alana e Suzala são apenas exemplos de mães que provam, a partir do luto, que o amor é capaz de transcender o espaço, o tempo, os sentidos e as circunstâncias, se ressignificando e se mantendo presente na memória daqueles que perdem entes queridos.

A lei Maria Flor é também um momento de transformar o luto em luta para que se busque mais dignidade e cuidado com mães e familiares que perderam prematuramente seus bebês, dor que é somada também à perda de toda uma expectativa para uma vida que estava prestes a vir à luz.

Comentários


Instagram

Facebook