Denúncia de abuso de poder e violação de direitos na implantação da Zona Azul Digital em Vitória da Conquista’’
Arte: Rosalve Lucas
Moradores de Vitória da Conquista tem denunciado que as novas regras da Zona Azul Digital, com uso obrigatório via aplicativo e cobrança pesada para quem não se adequar, transformam um serviço público em armadilha financeira e tecnológica para a população. As mudanças, previstas em lei e regulamentadas por decreto municipal, levantam dúvidas sobre os critérios de justiça social, transparência e respeito ao direito de ir e vir, especialmente para quem não domina ferramentas digitais ou não tem acesso constante à internet.
O que mudou na Zona Azul
A nova “Zona Azul Digital” foi criada por lei municipal em 2025 e regulamentada por decreto que detalha horários, tarifas, prazos e forma de fiscalização. O sistema passou a funcionar com controle digital das vagas, exigindo que o motorista registre o uso por aplicativo, site ou WhatsApp sempre que estacionar nas áreas demarcadas.
As tarifas básicas foram definidas em R$ 3,00 por hora para automóveis e utilitários e R$ 1,50 para motocicletas, com taxa extra de conveniência de R$ 0,40 para quem optar pelo pagamento via WhatsApp. A permanência é limitada, com tempo máximo de duas horas por vaga e intervalos obrigatórios antes de retornar ao mesmo ponto, o que impacta diretamente trabalhadores, clientes do comércio e moradores que dependem do carro no dia a dia.
Tarifa “punitiva” de até R$ 60
Um dos pontos mais polêmicos é a chamada Tarifa de Pós-Utilização (TPU), cobrada de quem não regulariza o pagamento no prazo estipulado pelo sistema digital. De acordo com a regulamentação, o valor da TPU corresponde a dez vezes o custo de duas horas de estacionamento para o tipo de veículo, o que pode chegar a cerca de R$ 60,00 para automóveis, em caso de reajustes ou aplicação da fórmula máxima prevista.
Na prática, o motorista que não conseguir registrar o uso via aplicativo ou não for notificado a tempo por meios digitais pode ser surpreendido com uma cobrança muito superior à tarifa normal de estacionamento. A prefeitura afirma que a medida não se trata de multa de trânsito, mas de uma tarifa administrativa para evitar a “indústria da multa”, o que não afasta a percepção popular de penalidade desproporcional e pouco clara.
Dependência do aplicativo e exclusão digital
Outro foco de reclamação é a dependência quase total de meios digitais para usar um serviço que ocupa espaço público essencial à mobilidade urbana. O modelo prioriza registro via aplicativo, site ou WhatsApp, com pagamentos preferencialmente eletrônicos, como QR Code, cartões e PIX, o que cria barreiras para idosos, pessoas com baixa escolaridade, trabalhadores informais e motoristas sem internet móvel estável.
"O que mais nos deixa revoltado é que temalguns lugares com QR Code fixado em postes. Quem garante que não é golpe. Quantos casos pelo país afora relacionado a golpes com uso desta forma de pagamentp. Eu não tenho segurança de pagar por essas formas. E os funcionários da zona azul desaparecem. Parece que ficam contando o tempo para fazer notificação", reclama Luiz Antonio.
Embora a regulamentação cite a previsão de pontos de venda, monitores de campo e canais rápidos sem cadastro, a experiência relatada por usuários é de insegurança e desinformação sobre onde e como regularizar o estacionamento sem domínio das ferramentas digitais. Essa realidade contrasta com o discurso oficial de modernização e inclusão tecnológica, levantando a pergunta: a cidade está preparada para “digitalizar” um serviço público sem garantir, antes, acesso efetivo e orientação clara a todos os cidadãos?
Legalidade, proporcionalidade e transparência
A legislação municipal autoriza o município a fixar tarifas de uso das vagas e também a cobrar valores pelo “excesso de ocupação”, inclusive em normas anteriores de zona azul. Porém, a fórmula que multiplica por dez o valor de duas horas de estacionamento, transformando uma simples falha de registro digital em cobrança pesada, reacende o debate sobre a proporcionalidade dessa penalidade e o dever do poder público de proteger o usuário, não de “punir” o desinformado ou excluído digital.
Especialistas em mobilidade e direito do consumidor apontam que qualquer sistema de cobrança deve garantir clareza, ampla divulgação prévia, alternativas acessíveis e mecanismos simples de contestação, especialmente quando o valor se aproxima da realidade de uma multa de trânsito. Ao adotar tarifas elevadas vinculadas a um sistema 100% digital, o município também se expõe a questionamentos sobre violação do princípio da razoabilidade, foco em arrecadação e possível transformação do estacionamento público em fonte de receita punitiva, em vez de instrumento de organização do trânsito.
Vozes da rua e perguntas que ficam
Nas ruas e nas redes sociais, o sentimento de parte da população é de indignação e surpresa com a forma como as mudanças foram anunciadas e implementadas. Moradores relatam confusão. Para Gilberto Souza, que precisa vir ao centro algumas vezes por semana para resolver questões de trabalho, "falta informação clara nas áreas de estacionamento e o medo é receber tarifas altas por erros ou dificuldades no uso do aplicativo, o que afeta pra quem trabalha diariamente no centro e não tem alternativa de transporte".
Diante do cenário, ficam algumas perguntas essenciais ao poder público: por que implementar um modelo tão dependente de tecnologia sem uma ampla campanha de orientação presencial e acessível? A cobrança de até R$ 60,00 em uma cidade com forte desigualdade de renda atende ao interesse coletivo ou cria mais um fator de exclusão e punição econômica para quem já enfrenta transporte público precário e pressão no custo de vida?







