Conteúdo sensível...
Ilustração: Universa/UOL
Por Laís Sousa
Vários conteúdos que chegaram esta semana, dos quais destaco três, me atravessaram de forma sensível. Tratar de gênero e raça numa sociedade ainda tão desigual é delicado e me faz sentir muito. Mas não é esse o compromisso que assumi ao escrever?! Nada como sentir para fazer sentido. Eis-me compartilhando e esperando que de alguma forma você sinta e passe a pensar também…
O primeiro caso, de uma jovem mineira de 22 anos, que teve várias oportunidades de ser salva, mas que não teve sequer um super herói, uma vez que todos os homens envolvidos colaboraram para um desfecho que abala a todos enquanto humanos. Ela saiu alcoolizada de uma festa em que estava com amigos e foi deixada, pelo motorista de aplicativo com ajuda de um transeunte, desacordada na porta do seu condomínio localizado bem próximo a um hospital. O irmão, que havia tomado remédios fortes, dormiu desatento à sua chegada. Ela foi carregada como um saco de batata nas costas de um estuprador que cometeu seu crime por horas, até ela ser encontrada seminua em um campo.
Não sei como te alcança, mas aqui deu calafrio. O tanto de desdobramento disso dá desamparo, sobretudo quando a vítima ainda é julgada pela vulnerabilidade de não estar sóbria para atender a moral e os bons costumes. Como se fizesse tanta diferença…
Eu não consigo pensar em diversão na balada com alguém à mercê da própria sorte. Eu não consigo pensar em estado de vulnerabilidade sem acionar ambulância ou mesmo a polícia. Eu não consigo pensar num corpo ignorado e violentado sem qualquer consideração ou permissão. Eu simplesmente não consigo pensar como um homem, porque nem todo, mas sempre uns que nunca irão entender a insegurança agravada na existência de uma mulher.
E ver que Anitta precisou vir a público defender que não “venceu muito na vida” por causa do relacionamento estabelecido com um homem cuja cara parece ter sido criada em um app de inteligência artificial enquanto a dela foi construída para deixá-la mais próxima do padrão é realmente sensível para pensar o “desvalor” creditado à nós e perpetuado na sociedade, não importa quais sejam nossas conquistas. Ela que tem experiência, faz e acontece, quebra recorde e é precursora de uma trajetória empresarial e musical notória a nível mundial...
Nós mulheres salvamos a nós mesmas e precisamos fazer isso constantemente. Olhar por e para nós com amor! Precisamos parar de impregnar nas cabeças a obrigatoriedade do casamento, do compromisso, de permanecer fazendo funcionar relações, mesmo que sejam tóxicas. Do compromisso com Deus e o diabo, com o conservadorismo, com o homem e quase nunca com nós mesmas. Precisamos parar de acreditar que existe um padrão ou nível para sermos assumidas ou aceitas e passar a entender que podemos escolher com quem, quando e se alguém terá a sorte de vencer na vida estando ao nosso lado.
E aí, já um tanto quanto desgastada emocionalmente, recordo o caso de Rafa Fleur sendo obrigada a tratar publicamente de um assunto tão íntimo após sofrer graves críticas e ataques de ódio a nível de desejar morte de câncer por um “bronzeamento artificial” que nunca existiu.
A jornalista foi acusada de estar falsificando sua identidade racial na internet para fechar contratos publicitários. Após identificarem fotos antigas em que a influenciadora aparecia com a pele muito branca e cabelo alisado, começou o burburinho com acusações de “black face” e “black fish” - processo de se fantasiar ou pescar likes na internet se passando por preto. Expostas as fotos de sua infância, podemos notar que ela sempre foi como se apresenta hoje, mas há alguns anos atrás ela tentou se embranquecer para ser aceita...
É muito doloroso a gente aprender a construir um amor pela identidade negra e ela ser arrancada de alguma forma por pessoas que visam estar defendendo as pessoas negras. Fato é que o que mais tem nesse mundo é gente tentando entrar no padrão de beleza que ainda não é ser como a gente: ainda é ser branco, ainda com cabelo liso… Muitos de nós, inclusive eu, passa pelo processo de branqueamento sem sequer saber que estão passando, buscando apenas ficar “mais bonita”ou ser “mais aceita”.
Pessoas pardas, negras de pele clara, nunca vão ter a mesma violência racial de pessoas retintas, óbvio! Mas isso não quer dizer que nós não sofremos violência racial, apenas sofremos uma violência diferente. Se por um lado se defende que “quem é negro mesmo sabe e não tem como se disfarçar”, por outro, é possível criar mecanismos para tanto. Quem somos nós para julgar a estratégia que cada um escolheu ao longo da vida para fugir de ser chamado de “encardida”, ter o cabelo chamado de “ruim”?! Isso não é bom… dói… ninguém se forma e estrutura para isso. O problema não é alguém clarear ou escurecer fotos na internet, é o que faz ela querer mudar o tom de pele para ser valorizada. O problema é estrutural e se chama racismo!
Se você não sentiu nada ou sentiu apenas cansaço após esse apanhado, talvez esteja muito confortável nessa zona de desconforto. Ser indiferente ao que afeta tantas existências é tão sensível quanto o conteúdo…
E aqui eu alerto a necessidade de fortalecer a sororidade entre mulheres, mas especialmente falo para nós, racializados: a forma de termos força política para conseguir proteger e conquistar direitos é se unindo como uma população que é oprimida. Ficar lutando por migalhas entre nós que já somos tão desvalorizadas ou marginalizados não é a solução. Enquanto a gente desgasta energia com a régua imaginária de medir sofrimento e quem é mais ou menos digna, mais ou menos preto, os homens e os brancos continuarão seguindo seus pactos, sem dúvida ou entrave. Porque apenas de olhar eles vêem diferença, embora na maioria dos casos não assumam que exista um tratamento diferenciado.
Laís Sousa
Jornalista-marketeira-publicitária comunicando em redes sociais de segunda a sexta. Escritora e viajante nas horas cheias e extras. Deusa, louca, feiticeira com trilha sonora em alta. Leitora, dançarina e pitaqueira por esporte sorte. Vamos fugir!@laissousa_
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