Então é Natal

Vou começar confessando que sinto que venci uma procrastinação para escrever o texto de hoje. Estamos todos cansados. É uma coisa que eu tenho ouvido de todos os lados, seja de amigos, pacientes, conhecidos, pessoas em redes sociais. Em uma imagem que circula por aí diz-se que todo problema de trabalho agora soa como “um problema de 2024”, no sentido de que pode ser adiado para o ano que vem. O sentimento de esgotamento é geral e parece que todos aguardam o famoso recesso para realinhar os projetos e poder voltar ao “normal”. Será que esse ano é diferente e foi mais pesado mesmo? O que será que existe neste período que faz com que nos sintamos assim? Mudanças de data e ano são dias normais em que por convenção estabelecemos que muda algo, ou pelo menos: não era para ser isso?

É possível que nem a cantora Simone suporte mais o seu hit natalino famoso. Mas, hoje quero partir desse clichê. Acho que um dos grandes incômodos de quem ouve essa música é a lembrança trazida pelo refrão: “e o que você fez?”. Festas comemorativas, tais como por ex.: aniversários ou datas associadas a alguma memória afetiva importante são pontos que utilizamos como referência em nossas vidas. Todo nosso conceito de tempo é visto em termos de referência a algo. A/C e D/C, o calendário chinês, o calendário judaico, o nosso “Antes e Depois da Pandemia”. Sempre que falamos de tempo estamos pensando em um recorte. E datas como o Natal e o Ano-Novo são inícios e fechamentos de ciclos que utilizamos em nossas vidas. São datas simbólicas é verdade, mas que guardam grande importância em termos de referencial nas nossas vidas e, por conta disso, carregam e evocam sentimentos intensos.

“O que você fez?” A chegada de mais um ciclo traz inevitáveis comparações e balanços. Onde eu estava nesse período no passado? O que eu queria ter atingido? Por que eu não consegui atingir? Por que no primeiro semestre eu consegui seguir meus planos e depois tudo se perdeu?

Mas “pelo menos eu estou saudável”, “pelo menos eu [inserir aqui uma fala de algo mínimo que não deveria ser o que me faz ficar feliz]”. A psicóloga Joana Vartanian fez um comentário fantástico em sua rede social essa semana. Parece que neste período utilizamos o “pior cenário possível” como referencial para nos contentarmos com as perdas que tivemos ao longo do ano. Perdas que precisam ser sentidas também. É daí que aumentamos o nosso descontentamento. Evitar o pior cenário não é ter algo bom, é só alívio de não entrar em contato com algo pior.

Lá em cima eu falei que sentimos vontade de “realinhar” e “voltar ao normal”. Queria falar mais sobre essa escolha de palavras. Ou melhor, queria propor uma reflexão. Será que em algum momento nossa vida vai ficar realmente alinhada? O que é o normal se não esse movimento de caminhar em direção ao que desejamos enquanto tentamos não nos afastarmos muito de tudo que é valoroso para nós? O nosso tempo é limitado. Vivemos um tempo de cada vez. E cada um experencia o tempo de forma diferente também. Olhar para o tempo em termos de referência faz sentido, mas vira problema quando nossa mania de referenciar usa o tempo do outro como comparação.

Imagem: Reprodução. Cena do filme “Barbie” (2023)

E como não citar o filme que gerou uma das maiores comoções do ano. Sim, foi esse ano ainda. Olha que coisa como o ano é um tempo que cabe tanto que até esquecemos tudo que contém nele. Eu gosto muito dessa cena em particular porque parece ridículo e jocoso ver a atriz Margot Robbie reclamar de não ser bonita o suficiente ou boa o suficiente em nada. Afinal, ela é uma referência de beleza para a maioria, correto? Talvez o seu vizinho pense isso sobre você quando o vê falando que fez pouco ou quase nada.

Não usamos apenas grandes datas como referencial. Usamos também grandes passos para medir nossos progressos. Quando na verdade, grandes transformações, grandes atitudes, dias incrivelmente produtivos, são a exceção. Eles assim o são justamente porque são raros, assim como são poucas as datas mais marcantes do ano. A maior parte dos nossos grandes progressos começa em pequenos dias e pequenos movimentos. A segunda-feira que seu maior feito foi sair da cama. Aquela terça-feira tediosa de setembro em que você em crise sobre o que realmente está fazendo da vida se fez a pergunta do que deseja e começou a traçar planos. Aquela outra quarta-feira lá em março em que alguém te disse algo que só fez sentido meses depois e que te deu coragem de tomar uma grande decisão. Só olhamos os grandes momentos. E eles são apenas parte do todo. Você viveu todos os dias desse ciclo.

Eu não estou negando que talvez esse seja o “pior ano” para você. Você que o viveu, você sabe do que fala. Nem quero impor que esse não é um ano diferente dos anteriores. Eu entendo e compartilho o sentimento de cansaço geral. Existe até uma piada na rede social Twitter (usuários da rede vão entender o porquê ainda a chamo assim) sobre o recesso dos psicólogos no final do ano e como este período é complicado para todos. Talvez a ceia de Natal seja traumática para você. Eu consigo ver de onde surge a preocupação. Faz sentido que você sinta falta desse acolhimento. Eu e meus colegas merecemos descanso, vocês merecem acolhimento e vamos nos equilibrando e reencontrando.

Eu sei que dizer que estamos todos esgotados não torna menos ruim esse sentimento que você está sentindo. E evitar coisas ruins não é algo possível. Que nos sintamos então juntos. E aqui não quero falar em termos de “pelo menos”. Eu quero que nos sintamos juntos. Olhando para o lado bom de tudo isso. O lado de conexão, de estar com aqueles que amamos por laços de sangue ou por escolha. Poder nos abraçarmos e reconhecermos como iguais. A sensação deliciosa de pertencer. E de saber que vem um novo ciclo. Um novo ponto de referência e vários pequenos grandes momentos novos a serem vividos. Várias coisas que faremos até o próximo ciclo e quem sabe até a próxima crise ao ouvir a música da Simone. Somos seres de repetição. Pode acontecer de novo. Um feliz Natal e que o tempo possa renascer para você outra vez.


Maiana Pereira

Psicóloga, baiana, feminista e palestrinha que ama dar um pitaco. Falo sobre os cotovelos sobre tudo que me move. Sou daquelas que a vida tem uma trilha sonora própria. Quero saber mais, ouvir mais, ver mais, ler mais, ver como cada contexto se relaciona. Vem comigo?
Conheça também meu site https://www.maianapereirapsi.com/

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