Foi a Tesoura do Desejo

Quem tem medo de mudança? Eu já falei por aqui que o único sentido da vida é que ela segue em frente. E nesse sentido o que nos cerca sempre muda. Algumas mudanças são esperadas, outras queremos evitar. Há mudanças repentinas, outras acontecem tão aos poucos que não as percebemos a ponto de acharmos que sempre foi assim. Hoje eu quero falar com vocês sobre o desejo de mudar expresso através da mudança em nosso corpo.

Quem já ouviu falar sobre a história da mulher que quer mudar e que por isso corta o cabelo? É um clichê recorrente no universo feminino. Está na música que dá título a esse texto, nas novelas com o estereótipo da personagem que passa por uma mudança de vida e que precisa mostrar isso a seus antagonistas, na vida quando aquela conhecida termina um relacionamento e decide fazer uma mudança radical na aparência. Mas, por que isso acontece?

As nossas primeiras experiências com o mundo se dão através do corpo. Na hora do parto ao sentir o ar enchendo os pulmões pela primeira vez, o bebê chora. Aprendemos tateando. Tocando, cheirando, experimentando, repetindo o que ouvimos e aprendendo a nomear corretamente o que nos foi ensinado. E quem nos ensina a nomear essa relação que construímos é o outro que muitas vezes não tem acesso ao que sentimos e vemos. Com isso é possível que não saibamos nomear tudo que sentimos. E quando a falta de nome vem, retomamos aos nossos instintos mais básicos: aqueles ligados aos cinco sentidos. Antes da comunicação em palavras aprendemos a nos comunicar com o corpo.

Existe função em saber expressar ao outro o que sinto. Se me veem triste, e conseguem ler em minha face isso, é possível que eu receba ajuda. Como é mesmo o ditado? “Quem não chora, não mama”.  Existe, no entanto, aqueles cuja expressão foi punida e que tendem a evitar demonstrar emoções porque entendem que isso é demonstrar fraqueza. E lhes foi ensinado que demonstrar fraqueza é algo ruim. Tendo aprendido a não comunicar ao outro o que sente não recebe atenção em momentos em que seria necessário. E isso pode ser solitário.

Sendo o local mais primário de nossas emoções, é também através do nosso corpo que perpassa o controle social do que é aceitável ou não culturalmente. Mais que isso, o controle do que deveríamos desejar do nosso corpo. O corpo magro, mas que também é atlético, a imagem com aspecto natural e de pouca maquiagem, mas que tem retoques como um filtro de fotografia. Quais outras exigências você consegue pensar? Esse desejo passa sempre por algo inalcançável, algo que precisa ser buscado, uma felicidade e satisfação corporal que está por vir e nunca vem. Existe o movimento contrário que pode incidir também no mesmo tipo de controle do corpo. O cacho perfeito que leva horas e milhares de cronogramas que não cabem na realidade de quem tem uma rotina apertada. Frustração.

Imagem: Reprodução.  Cena de “Felicidade Por Um Fio” (2018)

No filme “Felicidade por um fio”, produzido pela Netflix, conhecemos a história de Violet Jones. Aqui eu faço um adendo. Não quero de maneira nenhuma resumir às questões permeadas por racialidade no caso de Violet a algo simples, mas tão somente usá-lo de maneira superficial como um exemplo do que falei anteriormente.

A personagem parece ter uma vida perfeitamente alinhada. Aos poucos vemos que por trás dos gestos contidos e da aparência impecável estava uma infância que a ensinou a controlar e não expressar o que sentia. E o maior sinal desta tentativa de controlar estava na relação de Violet com os cabelos. Ela acordava cedo todos os dias para alisá-lo e nunca deixou que o companheiro a visse sem estar arrumada. Ela aprendeu isso com a mãe. E no momento em que percebe que não está feliz com a vida que leva decide expressar isso de maneira radical e a forma mais decisiva que consegue fazer é raspando os cabelos.

O que Violet faz, junto a nossa moça do exemplo hipotético que corta os cabelos para demarcar uma nova fase da vida, é tomar uma decisão que será vista e que não poderá ser tão facilmente apagada. Um lembrete no espelho de uma decisão. Lembra do que falei sobre a função de expressar o que sentimos? Mudanças como essa podem ser gritos calados que precisam ser vistos e ouvidos. É sentir que mudou e que a aparência anterior é uma roupa que não te veste mais. É precisar afirmar essa mudança, ter orgulho dela, celebrá-la. É sobre quem faz, sobre quem precisa subverter a lógica que lhe foi ensinada sobre o corpo.

A aparência física é naturalmente atrativa para nós. Traços considerados saudáveis são considerados bonitos por nós. E com o tempo a influência do que nos cerca vai se entrelaçando com nossas preferências individuais. Digo isso porque cuidar da nossa aparência tem impacto positivo sobre nossa autopercepção. Quando nos sentimos bonitos tendemos a nos sentir satisfeitos com isso.  Nem toda mudança na aparência será por algo escondido, às vezes um charuto é só um charuto e um corte de cabelo é apenas uma forma de se sentir melhor.

Talvez esse meu texto faça mais sentido ao público feminino. Afinal, somos nós que mais sofremos com pressões estéticas. Mas, pense bem, você homem consegue ver como o desejo por um padrão de beleza afeta sua vida ou as vidas dos que o cercam? Pense também nas mudanças no corpo que celebram um novo momento. Um novo você para um novo caminho que decidiu tomar, para combinar com a pessoa que você está se tornando. Você envelhecendo e se dando conta que mudou de preferências. O desejo de mudar é também o desejo de continuar. Você muda porque está vivo.


Maiana Pereira

Psicóloga, baiana, feminista e palestrinha que ama dar um pitaco. Falo sobre os cotovelos sobre tudo que me move. Sou daquelas que a vida tem uma trilha sonora própria. Quero saber mais, ouvir mais, ver mais, ler mais, ver como cada contexto se relaciona. Vem comigo?
Conheça também meu site https://www.maianapereirapsi.com/

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