Eu Fiz do Meu Jeito
Talvez a citação mais feita sobre o livro “Alice no País das Maravilhas” seja aquela em que ao encontrar o gato de Cheshire a personagem principal pede ajuda para escolher a direção que deve seguir. O gato questiona para onde ela deseja ir e ela replica que não sabe. Ele então responde que para aquele que não sabe onde quer chegar, qualquer caminho serve. Mas, será que é isso mesmo? Será que sempre sabemos aonde queremos chegar? Como saber quais são os objetivos e desejos do nosso coração?
Imagem: Reprodução. Livro “Alice no País das Maravilhas”
Histórias infantis como Alice são construídas de forma a estimular crianças a entrar em contato com dilemas e conflitos adultos através da fantasia. Não quero fazer nenhuma análise psicológica profunda da personagem, mas quero que pensemos a partir desse ponto. A história começa com uma jovem que se distrai e segue um coelho branco e é isso que a leva até o país das maravilhas. Não é totalmente do nada, não é por falta de direção alguma. Ela segue o coelho porque, ao vê-lo, isso desperta sua curiosidade e esta é uma característica importante para nossa personagem, é algo que a mobiliza e a move. Se Alice não fosse Alice, sem a história de vida dela, as preferências individuais, o contexto dela e o momento adequado na vida dela (estamos falando de uma criança) não haveria história. Ela poderia ter ignorado, poderia ter achado que imaginou coisas, mas ela seguiu.
Meu ponto é: mesmo quando achamos que nos conhecemos pouco ou que precisamos desenvolver mais autoconhecimento, ainda sabemos algumas coisas importantes sobre nós. Nenhuma escolha de caminho é totalmente aleatória quando olhamos para nossa própria história. Por exemplo, talvez na sua escolha de profissão você tenha sentido que errou e escolheu algo que não tem muito a ver com o que você na verdade deseja para você. Mas, vamos olhar para a história que levou a essa escolha. Qual era a visão dos seus pares sobre a profissão? Qual era a imagem que as pessoas do teu meio compartilharam contigo sobre essa profissão? Isso facilitou ou dificultou a tua escolha por esse caminho? Qual aspecto você levou mais em conta para realizar essa escolha? Existiam outros aspectos que você considerava mais relevantes, mas por algum motivo ignorou? Qual foi o motivo?
Apesar de estar relacionado a nossos comportamentos mais privados, o autoconhecimento é um produto social. Isso significa que o que aprendemos sobre nós, aprendemos com o outro. Sentimos o mundo, mas as palavras que usamos para dar nome ao que sentimos são aprendidas com nossos pares. Essa é uma parte que pode ser complicada para o desenvolvimento do nosso repertório de autoconhecimento. E se o outro não sabe me ensinar porque nunca sentiu o que eu sinto? Isso que sinto é meu mesmo ou eu só acho que devo me sentir assim porque aprendi isso com o outro? O que é meu e o que é do outro?
Algumas coisas podem ser minhas e do outro, inclusive. Não é algo mutualmente excludente. Mas esse movimento de dúvida é importante para construção do eu e da identificação dos nossos objetivos e valores. De forma resumida, objetivos são as coisas que quero alcançar. Os valores envolvem questões mais profundas sobre o porquê eu quero alcançar. Para Alice, encontrar o coelho poderia ser um objetivo e a curiosidade/busca por entender o que ela via é um valor que a mobilizava. Valores são importantes porque nos conectam de forma mais profunda às nossas ações. Objetivos podem não ser alcançados a curto-prazo, mas se eu guio minhas ações por valores eu me sinto recompensada antes mesmo de alcançar o resultado. Isso se dá por estar seguindo um caminho que acredito que seja melhor para mim e que me aproxima da pessoa que quero ser. Você pode ainda não ter alcançado, mas está feliz porque sabe o que te move e sabe o porquê faz o que faz e por que escolheu seguir o que escolheu.
Nem sempre sabemos onde queremos chegar e quais são nossos desejos. Talvez isso seja fruto de baixo autoconhecimento. Talvez você tenha sido uma pessoa que seguiu o que era esperado e nunca tenha se conectado às suas ações de forma mais profunda. Mas sempre é possível e mais saudável saber o que desejamos e o que nos move. Experimentação é um bom caminho. Fico pensando na frase do gato de Cheshire “qualquer caminho serve”. Muitos interpretam como uma coisa negativa não ter um objetivo claro, mas conhecer diferentes caminhos é também uma forma de se conhecer. Cada decisão traz consequências e são com elas que aprendemos sobre o mundo e sobre nós. Pensar, refletir, conversar com outros e ampliar nosso repertório social também são formas de ampliar o autoconhecimento. Afinal, somos seres sociais. Aprendemos nos relacionando.
Falei já algumas vezes nessa coluna sobre a importância da aceitação e da flexibilidade. Este é mais um ponto para ver a importância de conhecer nossos valores. Objetivos são alcançados ou não. Para que eu deveria me flexibilizar, adaptar, expor se isso não me aproxima de cumprir objetivos? Mas olhando pelo lado dos valores é mais fácil flexibilizar e praticar aceitação. Eu flexibilizo e aceito porque isso me aproxima do que eu quero. A ação em si ganha importância para mim.
Aprender e priorizar mais sobre nós por vezes pode desagradar o outro. Afinal, agora nos movimentamos mais em direção ao que nos é caro do que ao relevante para outrem. Se o outro tinha ganhos comigo me comportando sem me priorizar ele pode se sentir ameaçado com a minha mudança. Toda ação tem consequências para o meio. O importante é aprendermos com esses produtos do ambiente e pesarmos quais consequências estamos dispostos a viver com. Aprendemos sobre nós com o outro, mas em última instância somos nós que decidimos como vamos viver. E no fim é isso: uma vida completa e plena não é a que te disseram que era correta. É aquela que você deseja viver.
“Eu vivi uma vida que foi completa
Eu viajei por toda e cada estrada
E mais, muito mais que isso
Eu fiz do meu jeito”
Frank Sinatra – My Way (tradução livre)
Maiana Pereira
Psicóloga, baiana, feminista e palestrinha que ama dar um pitaco. Falo sobre os cotovelos sobre tudo que me move. Sou daquelas que a vida tem uma trilha sonora própria. Quero saber mais, ouvir mais, ver mais, ler mais, ver como cada contexto se relaciona. Vem comigo?Conheça também meu site https://www.maianapereirapsi.com/