Só a bailarina que não tem
Imagem: Reprodução. Natalie Portman em “Cisne Negro” (2010)
Bailarinas são símbolos de disciplina no imaginário popular. Este tipo de dança exige muita prática e domínio técnico. Não é à toa que muitas bailarinas que obtém maior reconhecimento em suas carreiras começam a prática crianças. Aprendem a dominar o corpo e utilizá-lo para além do que fomos biologicamente programados para fazermos. Ponta do pé, curvatura perfeita, todo o peso do corpo empurrando para baixo e para o feio e a bailarina lutando contra a física do seu corpo executando movimentos leves, precisos, intencionais, coordenados e sincronizados perfeitamente com a música. Repetitivos e sendo repetidos à exaustão. Elas devem ser capazes de executar cada movimento que não nos é natural da forma mais natural possível. Todos os ensaios, todos os anos de prática, tudo dedicado para um momento singular diante de uma plateia. Para esta plateia, naquele momento, elas precisavam fazer o que ensaiaram de forma perfeita. Isso faz delas perfeitas?
Nós sabemos que ninguém consegue ser perfeito. Então, por que tentamos tanto? Por que nos frustramos tanto quando não conseguimos?
Se você prestar atenção, este não é um texto sobre bailarinas. E eu devo ter sido injusta e me valido de um estereótipo para provar um ponto. Em doses maiores ou menores, todos exigimos de nós mesmos um resultado que seja a cada vez melhor, mas sem um teto máximo para realização. Atinge a meta e dobra a meta. Ok, vale a pena buscar sempre mais. Mas, você lembra de comemorar cada feito? De se sentir bem por cada progresso? Espetáculos são coisas pontuais e raras. Fazer uma boa apresentação é importante, mas tão importante quanto é o ensaio que te preparou para aquele momento. Há quem não consiga se sentir bem nem mesmo tendo feito o melhor espetáculo. Este vai se apegar aos erros e ao que pode ser melhorado, esquecendo de ouvir e aceitar os aplausos da plateia. É a armadilha do perfeccionismo.
Sabe aquela piada sobre a pessoa que vai a uma entrevista de trabalho e se descreve como perfeccionista na hora de citar um defeito porque aparentemente é algo bom de se ter? Tem um fundo de verdade. Pessoas que seguem padrões de perfeccionismo podem ter desempenho elevado e reconhecimento em suas áreas de expertise. Mas, por outro lado, estão sujeitas a adoecimentos ligados a baixa tolerância à frustração e dificuldade de receber críticas. É um padrão que pode levar a exaustão, e quando isso ocorre os comportamentos que antes eram produtivos agora não produzem mais os mesmos efeitos. A dor sobrepõe a satisfação em entregar algo bom. Para evitar lidar com a frustração de não entregar o perfeito, a ação pode ser substituída por não entregar nada. Sim, de fato pode existir uma ligação entre procrastinação e perfeccionismo.
Imagem: Reprodução. Natalie Portman em “Cisne Negro” (2010)
Imagine o seguinte cenário: uma pessoa desenvolveu habilidades complexas em uma dada área. Para adquiri-las, precisou se dedicar horas para isso, treinou bastante, aprendeu variadas formas de fazer uma coisa e posteriormente tendo aprendido quais maneiras funcionam melhor, parou de variar e começou a só fazer o que aprendeu que funciona mais. O problema de parar de variar nossos comportamentos é que contextos mudam. Executar com fluência uma tarefa muito praticada pode ser extremamente recompensadora, mas o outro lado da moeda é que pode gerar ansiedade em mudar mesmo que minimamente. E não há como fugir da mudança. Penso que este caso pode ser bem ilustrado em “Cisne Negro” (2010).
Para quem não conhece, o filme que cito ilustra a história de Nina, uma bailarina profissional que concorre a um papel em O Lago dos Cisnes. Mais uma vez declaro que não pretendo fazer uma análise profunda e completa, por isso não abordarei todas as questões de transtornos mentais subjacentes à personagem. O que importa aqui é o seguinte: Nina dedicou-se a aprender a técnica do balé e a realizá-la com intuito de chegar à perfeição de cada movimento ensaiado. A técnica dominada por Nina é perfeita para o papel de cisne branco, mas para ganhar o papel principal ela também deveria ser capaz de executar bem o papel de cisne negro. As técnicas ensaiadas por Nina não dão espaço ao improviso e ser o Cisne Negro exige movimentos menos delicados da bailarina. Estas modificações evocam extrema ansiedade para personagem. Ela precisa aprender, mas se sente desconfortável. O processo de aprendizagem de uma nova habilidade é desconfortável. É preciso cair, fluir, se expor a possibilidade de parecer ridículo fazendo algo que você não tem experiência. Tenho a impressão de que a falta de flexibilidade de Nina é o que a leva ao triste final. “Eu fui perfeita”, diz Natalie Portman na última cena do filme. E sinto pela personagem, mas ela não foi. Ela era o cisne branco e se tornou o negro. Um ou outro. Ela nunca conseguiu viver a fluidez de ser ambos.
E talvez esse seja o ponto que quero chegar. Podemos ser contraditórios. Somos contraditórios. Somos seres que agem de forma perfeita e que erram miseravelmente. Nem todo dia o teu melhor será o mesmo melhor que você alcançou no dia anterior. E que bom, isso significa que amanhã também não será igual.
Minha mãe que me desculpe, mas eu sou todo mundo sim. Sou um pouco como todo mundo que falha, que ama, que às vezes fede, que um dia teve marca de pereba, coceira, frieira e tudo mais que a bailarina de Chico Buarque não tem. Perfeita só a bailarina da caixinha de música que fica girando em torno de si mesma, nunca variando, sempre a mesma música, sempre a mesma dança, a bailarina congelada no tempo. O gostoso é saber que pode dar errado. É por ter a possibilidade de dar muito errado que quando dá certo é muito gostoso. É o que faz a vida preciosa: ela dá errado. E um dia a música acaba.
Maiana Pereira
Psicóloga, baiana, feminista e palestrinha que ama dar um pitaco. Falo sobre os cotovelos sobre tudo que me move. Sou daquelas que a vida tem uma trilha sonora própria. Quero saber mais, ouvir mais, ver mais, ler mais, ver como cada contexto se relaciona. Vem comigo?Conheça também meu site https://www.maianapereirapsi.com/