O tolo vai temer a noite
Do que você tem medo? Perceba que eu não perguntei se você tem, eu assumi que algo te amedronta. É algo inato, todos temos medos. E apesar de nem toda fobia ser algo que nos impulsiona para frente, o medo em si é benéfico para nós. Como separar então o que me ajuda do que me atrapalha? Como lidar com esses medos que não são saudáveis e que também possuímos?
“É melhor acender uma vela do que praguejar contra a escuridão” (ditado popular)
Talvez um dos medos mais comuns entre crianças seja o medo do escuro. Faz sentido. Diferente de alguns animais, somos uma espécie que não tem recursos de adaptação para esse contexto. No escuro eu não enxergo bem e se não vejo com clareza posso não ver quando estou cercada de perigos. É um medo que tem uma função adaptativa. Quem tinha medo fugia ou lutava e quem reagia de maneira defensiva teve mais chance de sobrevivência. O medo do desconhecido nos protegeu e muitas vezes ainda protege, mas com os perigos que nos cercam hoje talvez não faça sentido mais que nossas reações principais de defesa sejam luta ou fuga. Vale a pena lutar ou fugir de um assaltante armado? Como lutar ou fugir de uma dívida? Do medo de enfrentar uma situação pública?
Gosto do ditado popular que cito porque ele nos sugere acender uma vela quando a escuridão toma conta. E acender uma vela aqui entra como desenvolver estratégias para lidar com os nossos medos, de aprender a ser corajoso. Afinal, medo e coragem são duas faces de uma mesma moeda. É interessante entender de onde nossos medos vêm. Muitas vezes eles vêm não da nossa própria experiência, mas do que nos disseram que deveríamos temer. Mas, no caso de fobias é provável que nunca entendamos completamente a origem de algumas delas. O que não nos impede de agir sobre elas.
Um dos métodos mais interessantes para lidar com o medo é a exposição gradual e continuada aquilo que nos dá fobia. É o que chamamos de dessensibilização. Escolhe-se uma parte do todo que inclui o nosso medo e vamos gradualmente inserindo elementos mais complexos e ações mais complicadas. Para uma pessoa com medo de falar em público, começar a falar diante de uma plateia pode ser um passo longo demais. Quando quebramos em pedaços como decorar o texto, gravar em áudio, ficar em uma sala de apresentação vazia etc. a tarefa vai parecendo menos impossível. Definir objetivos e criar metas factíveis são bons passos. É claro que a depender de quão intenso é esse medo, talvez não seja possível enfrentar sozinho e a pessoa necessite de acompanhamento para tal.
E não tem problema em precisar de ajuda. Nossos medos parecem muito reais porque as reações provocadas em nosso corpo são reais. Separamos saúde física e mental por pura conveniência, mas somos um só corpo que interage e reage com o mundo ao nosso redor. É no corpo que sentimos a pulsação acelerar, a temperatura do corpo se modificar, os músculos tensionarem. É difícil não acreditar que existe perigo quando todos os sinais de alerta do corpo disparam ao mesmo tempo. Não existe é “só” em sua cabeça, quando todo teu corpo acredita na cabeça e reage ao que vê e interpreta.
Imagem: Reprodução. Cena do filme “Monstros S.A.” (2001)
O mecanismo de proteção do nosso corpo é reagir rapidamente a situações desconhecidas. Quando alguém possui uma história de acesso a situações aversivas repetidas, ou sofreu uma vivência traumática, ou o contexto não o ensinou a sentir segurança, ou viveu em um ambiente invalidante, as reações emocionais podem ser potencializadas. Nem todos os medos nascem com a gente, mas nosso corpo aprende rapidamente a ter medo do que sinaliza perigo. Fico pensando no caso de “Boo”, personagem principal do filme “Monstros S.A.”.
Em um primeiro momento Boo é indiferente ao monstro que tenta a assustar no armário. Mas, ao primeiro sinal de que nem todos os monstros são bons, ela reage com medo. É curioso como no mesmo sentido, o monstro Sullivan tem medo daquela garotinha que aos nossos olhos parece inofensiva. Para ele não faz sentido não ter medo, ele não aprendeu de outra forma. Existe até uma piada sobre como contato com humanos é código 23-19, um dos tipos de perigo mais graves para monstros. E é só na convivência e exposição da humana e dos monstros que os personagens descobrem que o medo pode funcionar como combustível, mas é pouco eficaz diante de outras possibilidades.
Você já tentou utilizar seu medo como combustível para algo? Pode funcionar em um primeiro momento. Pelo medo da demissão, me submeto a algo que não quero. Por medo de perder algo, me coloco em situações desagradáveis. Pelo medo de enfrentar quem me faz mal, me calo e me afogo em coisas não ditas, mas sentidas pelo corpo. A curto prazo gera alívio. A longo prazo, sofrimento. A linha entre o medo ajudar e atrapalhar é tênue. Sinto muito por não poder trazer uma solução fácil. Acho que a melhor dica que posso dar é: medo é alerta, não é a verdade.
Fico pensando naquele personagem da autora que vem fazendo declarações transfóbicas cujo maior medo é ter medo. Eu definiria de forma diferente, acho que o maior medo dele é não ter coragem ou ficar paralisado pelo medo. Talvez eu devesse me corrigir aqui e dizer que o mecanismo de luta ainda funciona, mas a luta que devemos aprender não é física. É uma luta estratégica, de entender como eu posso me expor ao fogo sem me machucar.
“O tolo vai temer a noite, como a noite vai temer o fogo”, diz a letra cantada pela banda Nenhum de Nós. É nossa dualidade sendo os tolos que somos, e como as figuras que dão medo (que também podemos ser). O importante é olhar e me movimentar. O medo evitado nos engole, o medo que enfrentamos (respeitando nossos limites) pode ser superado. Acenda uma vela contra a escuridão que te assusta. E se estiver escuro demais, procure alguém para segurar uma vela ao teu lado.
Maiana Pereira
Psicóloga, baiana, feminista e palestrinha que ama dar um pitaco. Falo sobre os cotovelos sobre tudo que me move. Sou daquelas que a vida tem uma trilha sonora própria. Quero saber mais, ouvir mais, ver mais, ler mais, ver como cada contexto se relaciona. Vem comigo?Conheça também meu site https://www.maianapereirapsi.com/