Eu me sinto um estrangeiro
Você já sentiu como se você e sua parceria falassem línguas diferentes? Os gostos são semelhantes, vocês têm ideias em comum, escolheram estar juntos e ainda sim existem momentos em que parecem não entender o outro, não conseguem nem mesmo identificar como o raciocínio do outro faz sentido para ele. O que fazer quando se chega a esse ponto? Será que isso significa que é hora de terminar?
Existe um ditado comum em Psicologia da Família que diz que 1+1 em relacionamentos nunca é somente dois. Por trás de cada indivíduo que compõe o relacionamento existe uma família, valores diferentes, criações diferentes, noções diferentes do que é fazer sentido. E isso já complica toda a situação. Você está se relacionando com alguém que tem uma história diferente da sua e que pode de fato não estar sensível a alguns aspectos que você considera imprescindíveis em uma relação. Isso pode ocorrer porque esse outro não aprendeu que o que você considera importante é necessário. Relacionar-se com outros ensina a ter essa habilidade de ver e entender que o outro fala sempre de outro lugar. Mas cada um vem de lugares diferentes. E é por isso também que nenhum relacionamento é igual ao outro, mesmo que envolva a mesma pessoa. Nunca deixamos de aprender. E estamos sempre aprendendo qual língua nosso parceiro da vez está falando.
O que é imprescindível para você precisa ser dito e limites devem ser estabelecidos em conjunto. Vamos voltar a nossa analogia do relacionamento como uma linguagem. O que significa falar uma língua? Quem já procurou aprender a falar uma segunda língua sabe que é mais do que aprender palavras e quais os correlatos para elas na sua língua materna. O que faz a comunicação efetiva é quando aquele que fala transmite uma mensagem e ela é compreendida pelo ouvinte. E para isso é preciso entender um pouco da cultura por trás daquela linguagem, o contexto em que se pode usar ou não uma determinada expressão. Imagine o seguinte cenário, uma pessoa que você nunca viu na vida começa a falar coisas com um tom estranhamente íntimo e desconexo. Você tende a se afastar, correto? Essa pessoa não soube ler o contexto da relação que possuía (ou melhor, que não possuía) com você. Rejeitamos quem não sabe ler nossos contextos, mas não é possível fazer isso com nosso parceiro amoroso, pelo menos não se quisermos que ele continue sendo assim.
Um dos melhores filmes que assisti nos últimos tempos foi “Anatomia de Uma Queda” (2023), que rendeu uma indicação ao Oscar para brilhante Sandra Hüller. É um filme que mexe com (e frustra) nossa necessidade de saber qual a verdade por trás da história. Ela matou ou não matou o marido? No fim, o partido que tomamos fala muito de como nos relacionamos com a história do casal, com quais elementos nos identificamos mais, com quem é a pessoa que sentimos que deve ser protegida ali. E digo isso com toda dor porque quando assisti me senti fortemente inclinada a não gostar do marido da protagonista e dei razão completa a esposa no ponto auge do filme (que é a discussão de relacionamento que acontece na véspera do suicídio/assassinato dele). É o efeito que imagino que o roteirista desejava provocar. Nossa sensibilidade é despertada ao ponto de esquecermos o foco do julgamento e tratamos de quem é pior ou melhor, ele ou ela. Não existe vítima perfeita ali. Todos têm atitudes que podem ser lidas como reprováveis, ela por não ser uma pessoa doce e passiva, o que faz com que parte da audiência a considere fria e brigue para condená-la. Ele vira alvo de críticas por ser passivo demais e culpá-la por coisas que são responsabilidade dele, mas será que por isso ele deveria morrer? Acho isso um bom exemplo de como não existe neutralidade para nós quando nossos afetos estão envolvidos. A vontade de tomar partido vira “o que eu faria?”.
Imagem: Reprodução. Cena de “Anatomia de uma Queda” (2023)
O casal do filme tem nacionalidades diferentes. Ela é alemã, ele é francês, comunicam-se em inglês que é a linguagem em comum que possuem. Não pude deixar de pensar em quanta coisa se perdeu na tradução da relação dos dois, e assistindo ao longa fica claro que os problemas entre eles não foram só devido às diferenças culturais. Não há mais comunicação ali. E sem comunicação não há como manter a saúde de um relacionamento. Talvez o seu parceiro e você não falem a mesma língua, mas isso não significa que toda tentativa de comunicação se encerra nessa barreira. Para continuar, é preciso ir além do não saber a palavra certa.
Talvez você esteja familiarizado com “as linguagens do amor” do autor Garry Chapman que figura entre os livros mais vendidos sobre relacionamentos. Gostaria de deixar claro que meu ponto não é esse. Tenho minhas dúvidas quanto as definições dele também. Eu não quero saber qual “língua do amor” você fala, me interessa muito mais como você se comunica quando se relaciona com alguém diferente e como manter a conversa efetiva ainda que falem línguas diferentes.
O que nos leva ao ponto que talvez mais te angustie: o que faço quando chego nesse ponto? Será que isso significa que é o fim? E eu te digo: não sei. Frustrante, eu sei. Mas, assim como contexto é necessário para saber o que dizer ou não, é preciso contexto para saber o que significa essa dificuldade de comunicação na tua história (que é só tua e não é igual a de mais ninguém) e na história do teu relacionamento (que novamente, não é igual a nenhum relacionamento anterior).
Uma coisa eu sei: se você anda se questionando bastante talvez esteja insatisfeito e isso significa que é hora de rever a comunicação com a parceria. Mais importante é sempre se movimentar em direção a uma comunicação efetiva. O casal precisa aprender e construir uma linguagem em comum. E talvez, assim como iniciantes, vocês errem palavras, confundam significados, precisem de tempo para encontrar as respostas, talvez coisas se percam na tradução antes que vocês se tornem fluentes. E fluência não é ausência de problemas. Eu me considero fluente em português e nem por isso conheço todas as palavras.
Para todo novo amor, uma nova língua. Para velhos amores, muitas palavras novas e novas necessidades para aprender. Iniciantes ou fluentes, somos todos aprendizes.
"Entre a minha boca e a tua, há tanto tempo, há tantos planos
Mas eu nunca sei para onde vamos
Eu me sinto um estrangeiro
Passageiro de algum trem
Que não passa por aqui
Que não passa de ilusão”
(Revolta dos Dândis – Engenheiros do Hawaii)
Maiana Pereira
Psicóloga, baiana, feminista e palestrinha que ama dar um pitaco. Falo sobre os cotovelos sobre tudo que me move. Sou daquelas que a vida tem uma trilha sonora própria. Quero saber mais, ouvir mais, ver mais, ler mais, ver como cada contexto se relaciona. Vem comigo?Conheça também meu site https://www.maianapereirapsi.com/