O racismo sambando sem entrelinhas
Roberto Batista/Divulgação
Quando áudios racistas atribuídos a Ana Paula Minerato vieram à tona, não foi só a sua reputação que sofreu abalos: também emergiu, mais uma vez, o debate sobre como o racismo permeia até as tradições mais profundamente ligadas à cultura negra no Brasil, como o samba. Minerato foi desligada pela Gaviões da Fiel, decisão que soou mais como um esforço de reparação pública do que como justiça verdadeira. Afinal, o racismo, diferentemente das notas de carnaval, não recebe avaliação rigorosa na sociedade.
A ironia dessa situação se desenrola ao considerarmos que o samba, com raízes na resistência africana, carrega a luta por dignidade e representatividade. É uma dança que ecoa a voz, os traços, a força de ancestrais escravizados e marginalizados. Quando alguém que pertence a esse universo verbaliza preconceitos, soa como se estivesse pisando no espaço errado…
Em pleno mês da Consciência Negra, somos lembrados das feridas abertas que o racismo ainda deixa. O episódio é um reflexo de um problema que transcende a fala de uma pessoa: é um sistema que minimiza a existência alheia. A relação que a negritude tem com seu cabelo, por exemplo, é apenas um dos reflexos de uma dor que se arrastou (e ainda arrasta) por muito tempo. Quanto tempo ainda se passará até que o cabelo crespo seja considerado apenas um cabelo? Até quando o cabelo da mulher negra será o alicerce de piadas e ofensas? Ouvir sobre “vir da África” e lembranças de nossas matrizes vão ser colocados em tons infelizes e pejorativos até quando?
Minerato, ao se desculpar, tentou redirecionar o foco ao alegar ter sofrido violência psicológica. Ainda assim, faltaram palavras que apontassem para uma autocrítica genuína ou um compromisso com a luta antirracista. É fácil pedir desculpas quando o racismo é revelado; difícil é mudar. Vestir branco e aparecer chorando é tão clichê e aguardado… mas ainda assim passa, por e para muitos.
O perdão rápido não permite a reflexão necessária. E aqui, entra a questão das consequências. Para uma sociedade que se diz civilizada, o fato de não haver punições concretas mostra o quanto o racismo ainda é subestimado. A falta de enfrentamento genuíno nos mostra que a verdadeira mudança só ocorrerá quando as pessoas entenderem que ser menos racista é um processo contínuo, que exige desconstrução. Não se trata de ser “não-racista” quando é conveniente, mas de ser antirracista de fato.
E assim chegamos à necessidade urgente do letramento racial, como a iniciativa do governo para capacitar funcionários públicos. É um passo, ainda que pequeno. Quem aprendeu racismo precisa aprender a combatê-lo. Porque, episódios como este só evidenciam que não basta desligar um integrante de uma agremiação. É preciso desfazer estruturas, não disfarçá-las. A verdadeira mudança virá quando o pedido de desculpas for substituído por ações concretas que edifiquem uma sociedade mais justa para todos.
Que a batida do samba continue ecoando para além dos desfiles, servindo não só como arte, mas como denúncia e ressignificação.
Laís Sousa
Jornalista-marketeira-publicitária comunicando em redes sociais de segunda a sexta. Escritora e viajante nas horas cheias e extras. Deusa, louca, feiticeira com trilha sonora em alta. Leitora, dançarina e pitaqueira por esporte sorte. Vamos fugir!@laissousa_
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