E ainda há quem duvide de que ler é um ato político

O Carnaval passou e, para alguns, o ano só começa agora. Se essa ideia for verdadeira, iniciamos 2025 da melhor maneira possível: com o Brasil inteiro comemorando, como se fosse Copa do Mundo, o Oscar de Melhor Filme Internacional para Ainda Estou Aqui.

Poderia falar por horas sobre a importância desse prêmio para o país, sobre como o cinema brasileiro é uma potência e como há obras incríveis fora do circuito comercial. Mas quero destacar um ponto indispensável: Ainda Estou Aqui só chegou ao Oscar porque, em 4 de agosto de 2015, Marcelo Rubens Paiva lançou um livro com o mesmo nome. E esse livro só existiu porque, em 2011, a então presidenta Dilma Rousseff — também vítima da ditadura — criou a Comissão Nacional da Verdade (CNV), órgão responsável por investigar as graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil entre 1946 e 1988, com foco especial nos crimes cometidos durante a ditadura militar (1964-1985).

A história que levou esse filme ao reconhecimento mundial começou com a busca por memória e justiça. E tudo isso porque alguém escreveu. Porque alguém leu.

Não à toa, livros sempre foram alvos de censura em regimes autocráticos. No Chile, fogueiras públicas foram usadas para queimar obras consideradas subversivas. Na Argentina, em 1977, mais de 80 mil livros da Biblioteca de Rosário foram incinerados. No Brasil, durante a ditadura militar instaurada pelo golpe de 1964, grandes obras como Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, Capitães da Areia, de Jorge Amado, e Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, foram proibidas. Mas não apenas censuradas — muitas foram queimadas em grandes fogueiras, junto a filmes, revistas, fitas magnéticas e discos.

 

Foto: Reprodução/Revista Piaui

 

Os militares tinham respaldo legal para essa repressão. A chamada Lei da Censura, em seu artigo 5º, inciso II, determinava: "A distribuição, venda ou exposição de livros e periódicos que tenham sido proibidos, após a verificação prevista neste decreto-lei, sujeita os infratores, independentemente da responsabilidade criminal, à perda de todos os exemplares da publicação, que serão incinerados a sua custa.” Há pesquisas muito interessantes sobre os critérios de apreensão dos livros na ditadura, e uma delas pode ser lida gratuitamente, pela revista da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) por meio deste link. 

Para muitos, isso pode parecer um passado distante, mas a censura de livros ainda persiste no Brasil e no mundo. Em 2024, O Avesso da Pele, vencedor do Prêmio Jabuti em 2021 e incluído no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) em 2022, foi recolhido de uma escola no Rio Grande do Sul e também pelos governos do Mato Grosso do Sul, Goiás e Paraná. A sinopse do livro o descreve como "um romance sobre identidade e as complexas relações raciais, sobre violência e negritude”. A justificativa para a retirada foi a suposta inadequação da linguagem para menores de idade.

No mesmo ano, O Menino Marrom, uma das obras mais importantes de Ziraldo, também foi recolhido de escolas em Minas Gerais. O livro narra a amizade entre duas crianças, uma branca e outra preta. O trecho que gerou polêmica envolve um pacto de sangue entre os amigos: inicialmente, eles pegam uma faca, mas logo desistem e optam por um alfinete. Depois, decidem usar tinta vermelha, que não encontram, e acabam selando a amizade com tinta azul. A justificativa foi a mesma: a inadequação da linguagem para crianças. Qualquer semelhança é mera coincidência. 

Marcelo Ridenti, autor de Em busca do povo brasileiro, explica: “Se você olhar a legislação, a censura sempre fez referência a matérias contrárias à moral e aos bons costumes; nunca ficou explícito que havia censura a temas políticos (...) A questão é que a censura, com base nesses critérios sobre a moral e os bons costumes, proibia também obras consideradas subversivas à ordem política.”

A censura a livros não é apenas um ataque à literatura, mas uma tentativa de controlar narrativas, silenciar vozes e restringir o pensamento crítico. O que foi queimado em fogueiras no passado ainda enfrenta interditos nos dias de hoje, sob novas justificativas e roupagens. No entanto, a história mostra que as ideias sobrevivem.

Enquanto isso, no mundinho booktok gringo, influencers propagam a ideia de que política e literatura não devem se misturar. Mas o simples fato de alguém ter tempo para ler já é resultado de inúmeros fatores sociais. Tratar a literatura como algo puramente escapista, isento de qualquer contexto, é um discurso que, no fundo, também serve ao controle. São falácias como essa que tornam os livros estéreis, despidos de subjetividade, reduzidos a meras palavras sem substância. Quando uma narrativa se aprofunda, desafia e usa uma linguagem mais crua, ela logo se torna alvo de censura, sob o pretexto de ferir a moral e os bons costumes. O que se espera, afinal, é uma literatura domesticada — sem nuances, sem camadas, sem margem para interpretação. Uma literatura sem vida.

Ler sempre foi e continua sendo um ato político — e, talvez, mais urgente do que nunca.


Ane Xavier

Estudante de Jornalismo e Ciência Política, apaixonada por comunicação e sempre com um livro em mãos. Também fala sobre leituras no instagram @booksbyane.

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