Em Vitória da Conquista pais de autistas lutam contra a deficiência de políticas públicas e o preconceito
O Transtorno do Espectro Autista – TEA – ou simplesmente autismo, não é considerado uma doença, mas um conjunto de condições caracterizadas por alteração do comportamento social, da comunicação, da linguagem e por um repertório restrito de interesses e atividades.
Quase tudo relacionado com o autismo representa desafios no Brasil, desde o diagnóstico, passando pela deficiência na execução de políticas públicas de educação e saúde, preconceito e até mesmo a falta de dados.
Estatísticas – No Brasil, estimativas mais recentes apontam para a presença de 2 milhões de pessoas com autismo no país – número que deve ser atualizado pelo último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que incluiu, pela primeira vez, o autismo em suas estatísticas. A intenção é mapear quantas pessoas têm o diagnóstico do transtorno, mas ainda não saberemos quantas podem tê-lo. Os novos números estão previstos para serem divulgados ainda em 2024.
O estudo “Retratos do Autismo no Brasil em 2023” teve uma amostra representativa de 13,8% de pessoas autistas, número significativo quando se observa que, segundo a ONU, 1% da população mundial está no espectro do autismo (considerando número bem conservadores, de mais de uma década atrás).
Em Vitória da Conquista, de acordo com a Associação Conquistense para Atendimento Especializado à Pessoa Autista – ACAEPA – há, aproximadamente, 8 mil autistas, um número em constante crescimento. “Não tem um dia que não recebemos de 3 a 4 ligações de pais buscando por ajuda porque teve o filho ou filha diagnosticado com TEA”, diz Vitória Aparecida, idealizadora e presidente da ACAEPA.
De acordo com levantamento da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, no Centro de Atenção Psicossocial Infantil e Adolescente - CAPS IA – estão cadastradas aproximadamente mil pessoas com TEA.
Problemas enfrentados pelos pais de autistas no sistema público de saúde
Se o acesso à saúde pública no Brasil apresenta diversos problemas, quando falamos sobre o TEA eles se mostram mais graves ainda. Para termos uma ideia do ritmo, somente em setembro do ano passado que a atenção à pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA), depois de consulta pública, passou a constar na Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência (PNSPD), fato considerado pelo Ministério da Saúde como inédito. Foram anunciados mais de R$ 540 milhões investidos na Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RCPD).
Diagnóstico – O Ministério da Saúde aponta que os sinais do neurodesenvolvimento da criança podem ser percebidos nos primeiros meses de vida, com o diagnóstico estabelecido por volta dos 2 a 3 anos de idade. O diagnóstico de TEA é eminentemente clínico e deve ser feito por uma equipe multiprofissional por não existirem marcadores biológicos e exames que confirmem todo o espectro do TEA. Então, cabe aos profissionais envolvidos um olhar sensível para observar o desenvolvimento e perceber características clínicas associadas ao TEA naquela pessoa que chega para uma confirmação diagnóstica.
Para Keire Cristina, mãe de uma criança com o TEA, uma das primeiras dificuldades enfrentadas foi encontrar em Vitória da Conquista profissionais qualificados para dar o diagnóstico. “A minha filha é prematura extrema. O pediatra que a acompanhou durante os primeiros anos de vida nos assegurava que o atraso dela era por conta da prematuridade. Por conta disso, o diagnóstico foi tardio”.
Keire diz que a partir daí, enfrentou uma outra dificuldade, a da espera para passar por um neuro. “O pedido da minha filha foi feito quando ela tinha 2 anos e meio, ela está com 7 anos, e, até hoje, não foi marcado. Muitas vezes a gente não tem condições de pagar na rede particular”, diz. Ainda segundo a mãe, com o diagnóstico tardio, veio a realidade devastadora de não ter suporte para o tratamento adequado para o caso da sua filha, que é nível 3.
“Não encontrei tratamento pra ela na rede pública. Desde o diagnóstico, ela se encontra na lista de espera do CAPS IA, para fono e os demais profissionais que ela precisa, porém fui informada que alguns profissionais não tinham na instituição, que ela seria deslocada para o CEMAE. Tendo em vista que não conseguimos o tratamento pelo SUS, fizemos um plano de saúde pra ela, que também não foi fácil como pensávamos, foi uma luta pra conseguir o tratamento”.
Clínicas Especializadas – Em Vitória da Conquista, a falta de clínicas e profissionais especializados em diagnosticar o TEA em crianças está na base da pirâmide das dificuldades enfrentadas pelos pais. A administradora Ione Macedo Nery, mãe do pequeno Francisco Inácio, de 6 anos, chama a atenção para a falta de hospitais e clínicas voltadas para as demandas peculiares deste público.
“O nosso sonho é ter um Centro Especializado aqui em Vitória da Conquista. As pessoas que precisam, que não têm condições de pagar um plano, só que a demanda está crescendo. Quando pensarem em fazer isso, não vai dar conta. Isso se chama também planejamento e política pública”, alerta.
A gama de serviços demandados por estas crianças com TEA vai desde terapias ocupacionais, psicólogos, fonoaudiólogos, nutricionistas até neurologistas, entre outros. “Antigamente essas crianças só eram medicadas e ainda tem gente com essa visão, de que eles precisam só tomar remédio para poder ele acalmar. Está faltando é informação”, queixa-se Ione.
Ione Macedo Nery, mãe do pequeno Francisco Inácio, de 6 anos. Foto: Arquivo pessoal
Uma outra mãe, que prefere não ser identificada, também relatou mais desafios enfrentados pelos pais de autistas em Vitória da Conquista. “Tenho uma filha autista de 6 anos, ela é nível 3. Eu preciso pagar para obter resultado, porque em nossa cidade não há um lugar específico, uma clínica ou hospital que possa atender as necessidades de nossas crianças, como terapeutas, neuropediatra, nutricionistas, porque muitas das nossas guerras que enfrentamos é com a seletividade alimentar, e nós de classe média baixa não podemos pagar nutricionistas, o BPC (Benefício de Prestação Continuada ) que ela recebe dá somente para as terapias”, disse à reportagem da Mega Rádio.
Vitória Celeste é mãe de Maria Esther, de 22 anos, também ressalta essas dificuldades. “Faltam profissionais aqui em Conquista para atender nossos filhos. Precisamos de um espaço adequado para eles se sentirem à vontade, mais tempo para terapia ABA, às vezes minha filha grudada na televisão o tempo todo, por não ter uma ocupação, um lugar que ela possa ser acompanhada e isso é minha maior dificuldade”, lamenta.
A terapia ABA, a qual Vitória se refere, é um método que ajuda a ensinar habilidades sociais, comunicativas, emocionais e de atenção, melhorando a qualidade de vida e a autonomia de crianças e adultos com transtorno do espectro autista.
O preconceito e a falta de empatia das pessoas só pioram a situação dessas mães. “Os olhares de julgamentos diante a crise da criança, a falta de empatia das pessoas. Pra gente conseguir que a criança sente no ônibus tem que entrar de imediato, se pegar o ônibus cheio, pra que as pessoas cedam o acento preferencial é preciso que o cobrador peça, e, ainda assim, não são todos que cedem. Alguns motoristas não param pra gente, isso já aconteceu comigo algumas vezes”.
Medicação – Ana Karla, mãe de Graziela de 6 anos, enfrenta problemas quando precisa adquirir o remédio Risperidona na Farmácia Popular. “Eles só aceitam receitas atualizadas, só entregam medicação de 1 mg e minha filha usa 2 mg. Eles poderiam pelo menos liberar duas caixas de 1mg e aí a gente podia ter a medicação dela regular”.
Karla ainda diz que o atendimento no CAPS – IA é insuficiente. “A gente tem que madrugar para tentar conseguir um atendimento com psicólogo, com a fono, geralmente são apenas quatro vagas”.
A lista de problemas é extensa e chega até mesmo a atendimentos em unidades de saúde, que deveria ser um local em que profissionais saberiam lidar com momentos de crise. “Ainda tem o despreparo dos profissionais na área de saúde, não estão preparados para atender um autista no pronto socorro por exemplo, eles não sabem como lidar com a agitação do autista, fazendo com que ele se agite mais e muitas vezes é preciso usar de contenção para que o mesmo seja examinado. As medicações, que na maioria das vezes não conseguimos na rede pública, as fraldas, pois muitos de nós pais não conseguimos desfraldar nossos filhos”, pontua Cristina.
ACAEPA – Sem recursos públicos, associação luta para se manter com ajuda dos pais
A Associação Conquistense para Atendimento Especializado à Pessoa Autista – ACAEPA – é sempre citada pelos pais das crianças como uma grande força nos grandes e sucessivos desafios enfrentados pelas pessoas autistas.
Atualmente com 47 associados a ACAEPA dispões de 11 profissionais, sendo cinco psicopedagogas, educadora física, psicóloga, psicomotricista, educadora musical, nutricionista e, eventualmente, um psiquiatra que trabalha em parceria. Oferece ainda atividades em grupos e individuais. A associação tem também uma assessoria jurídica para dar entrada no Benefício de Prestação Continuada (BPC ) e outras demandas. Os recursos são provenientes apenas das contribuições das famílias associadas e da comunidade, via campanhas de doações e rifas.
Para Vitória Aparecida, presidente da entidade, não existe nenhuma explicação plausível ou impedimento legal para que justifique a negativa de recursos do poder público à ACAEPA.
Vitória Aparecida e o pequeno Gustavo, 13 anos e diagnosticado aos 4, toca bateria e fala inglês. Foto: Foto: Vadinho Barreto
“Não recebemos absolutamente nada de recursos públicos, nem municipal, nem estadual e nem federal. Já mandamos projetos para tudo quanto é lugar, mas nada veio. Acionamos Ministério Público, Defensoria, Câmara de Vereadores, nada. Nossa documentação sempre esteve tudo em dia. Em 2022, conseguimos o título de utilidade pública estadual. Não entendemos o motivo de não conseguir recursos. A última solicitação nossa foi um terreno para construção, conseguimos, mas não recebemos porque só saiu agora no mês de março e não foi permitido porque é ano eleitoral”, diz Vitória.
O que diz a Secretaria Municipal de Saúde
Em contato com nossa reportagem para comentar as diversas queixas dos pais de crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Altista (TEA) e informações sobre as políticas públicas municipais em andamento, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) informou que o atendimento para crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Altista (TEA) é ofertado no Centro de Atenção Psicossocial Infantil e Adolescente (CAPS IA), sem a necessidade de agendamento prévio nem encaminhamento por outra unidade. Os acolhimentos são realizados diariamente, nos dois turnos, a partir das 7h.
Sobre a queixa da mãe citada acima, de ter que madrugar na fila do CAPS – IA, a SMS diz que a equipe da unidade desconhece a formação de filas durante a madrugada e que os pacientes não são orientados pela equipe a chegarem ao serviço antes do horário de funcionamento.
Terapia ABA – A SMS disse que no CAPS IA são ofertados atendimentos individuais e atividades em grupo, com o objetivo de estimular a autonomia e promover a interação social. E que atualmente, a unidade mantém cadastradas aproximadamente 1.000 pessoas com TEA.
“Para as crianças e adolescentes com TEA, são ofertados grupos de estimulação sensorial, habilidades sociais, conscientização corporal, coordenação motora e Atividades de Vida Diária. Já para a família, são oferecidas atividades em grupo com a proposta de fortalecer essa rede de apoio, com temáticas relacionadas ao conhecimento sobre o TEA e ao uso racional de medicamentos, além de formas de lidar com as crises e com os comportamentos”, diz a nota.
A SMS explica que se utiliza do Plano Terapêutico Singular (PTS), que define quais serão os atendimentos, a partir da demanda de cada um, e que este é elaborado entre a família e a equipe multidisciplinar do serviço. “Além das terapias coletivas, são realizados os atendimentos individuais com os profissionais que compõem a equipe multiprofissional”, afirma a Prefeitura.
A SMS informou que o governo municipal planeja a implantação de um serviço especializado em reabilitação intelectual. “Atualmente, o Centro Municipal de Reabilitação Física e Auditiva (Cemerf) atende na modalidade CER II, com especialidades física e auditiva, e encontra-se em processo de planejamento para mudança para a modalidade CER III, que inclui a reabilitação intelectual. No planejamento, está prevista a adequação da estrutura física e de recursos humanos para que o serviço seja implantado”.
Atendimento com profissionais
Em relação aos atendimentos individuais com fonoaudiólogo, a SMS disse que são agendados, em média, 8 a 10 pacientes por turno. Os atendimentos com nutricionista também são agendados, e que não existe uma demanda reprimida que dificulte o acesso. “Para o atendimento com psicólogo, o acolhimento e o atendimento são diários. Existe uma falta de pontualidade por parte de alguns pacientes, sem aviso prévio, e isso compromete o número de atendimentos realizados”, diz a nota.
Capacitação da equipe
No que se refere às capacitações e treinamentos, a equipe do CAPS IA está em processo de educação permanente, em caráter teórico-prático, em parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA). No dia 4 de julho de 2024, teve início uma capacitação que consiste na abordagem de temas relacionados aos cuidados para com esse público, visando o aprimoramento e a qualificação dos atendimentos no serviço.
Medicamento
Sobre o medicamento Risperidona, a SMS informa que é um medicamento controlado e que, por isso, só é possível atender o que está prescrito pelo médico. Nesse caso, para que o paciente leve o quantitativo dobrado (ou seja, dois comprimidos de 1mg), é necessário que o médico coloque desta forma na prescrição.
“Este medicamento só pode ser disponibilizado em farmácia que tenha farmacêutico presente, não sendo possível, ainda, a sua distribuição pelas unidades de saúde. A Farmácia da Família libera o medicamento para até 60 dias, independentemente do quantitativo, desde que prescrito”, diz a SMS.
Acompanhamento com neuropediatra
Ainda segundo a SMS, o acompanhamento com neuropediatra realmente tem uma demanda grande e, atualmente, a Rede Municipal dispõe de um único médico neurologista que atende crianças no Cemae – isso por conta da escassez de profissionais especialistas na região de Vitória da Conquista, o que dificulta a contratação. Além do Cemae, a SMS oferta este atendimento na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), por meio de convênio com a unidade que oferta vagas tanto para neuropediatra quanto para outros profissionais de nível superior.
Nossa reportagem procurou também a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia para obter informações sobre as políticas públicas voltadas para crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista, mas não obtivemos nenhuma informação até o fechamento da matéria.
Na segunda parte da nossa reportagem especial, você vai conhecer os problemas enfrentados pelas crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Autista na educação em Vitória da Conquista, as atuais diretrizes do MEC sobre o assunto, a opinião de especialistas sobre possíveis soluções para os desafios e conhecer histórias de autistas que conseguem se destacar mostrando competência e talento em diversas áreas de atuação na sociedade.
Reportagem de Caíque Santos
Edição de Fábio Agra