A vida tem algo de ciranda

Terminei Ciranda de Pedra recentemente e me vi obcecada pelo título da obra

Ps.: escrevi este texto ouvindo Roda Viva, canção de Chico Buarque. Recomendo que você leia escutando essa música também :)  

Sinopse: “Natércio amava Laura que amava Daniel. Virgínia amava Conrado que amava Otávia. Letícia amava Afonso que amava Bruna, que amava a Deus sobre todas as coisas. Nessa ciranda de sentimentos, cada um guarda seus segredos, anseios e frustrações, em especial a menina Virgínia, de cujo ponto de vista a história é narrada. Sob a superfície da normalidade, uma família  de classe média é abalada em seus alicerces pela loucura, pela paixão e pela morte.”

Terminei Ciranda de Pedra há alguns dias e, desde então, não paro de pensar nesse livro. Passei dias pensando qual abordagem eu poderia usar nessa coluna e, claramente, os caminhos para esta resenha são muitos: a forma como Lygia Fagundes Telles, uma mulher à frente de seu tempo, abordou tabus como saúde mental, religião e homossexualidade nos anos 50; a representação da mulher na narrativa; a linguagem quase alucinatória que permeia cada linha do texto; a infância como um espaço de fraturas e descobertas. Resumindo, como Carlos Drummond de Andrade definiu, é "um livro perturbador, que nos prende e nos assusta, que nos faz sofrer e ao mesmo tempo nos oferece o remédio compensador da arte".

Mas não consigo tirar da cabeça o significado de ciranda e o que ela simboliza na história. O livro é carregado de símbolos — e, ainda que seja minha primeira leitura de Lygia, arrisco dizer que essa simbologia parece ser uma característica própria da sua escrita. A maneira como ela insere esses elementos na narrativa tem um tipo de naturalidade que vi poucas vezes até então.

Ciranda de Pedra não é um romance que se revela de imediato. No início, cometi o erro (gravíssimo) de julgá-lo pela capa. Imaginei que leria uma história de amadurecimento convencional. Mas logo percebi que a busca de Virgínia é muito mais profunda. A ciranda, retratada várias vezes na narrativa, não é um jogo ingênuo, mas um movimento incessante da protagonista, quase sufocante. Um ciclo do qual ela tenta escapar — da infância, das memórias, de si mesma. Mas, como o título também sugere, a pedra está lá. Fixa. Intransigente. Virgínia pode girar o quanto quiser, mudar de cenário, fugir para onde for, mas a criança que foi, as dores que carrega, seguem com ela.

Via agora que jamais poderia se libertar das suas antigas faces, impossível negá-las porque tinha qualquer coisa de comum que permanecia no fundo de cada uma delas, qualquer coisa que era como uma misteriosa unidade ligando umas às outras, sucessivamente, até chegar à face atual. Mil vezes já tentara romper o fio, mas embora os elos fossem diferentes havia neles uma relação indestrutível. E o fio ia encompridando cada dia que passava, acrescido a cada instante de mais uma parcela de vida. Chegava a senti-lo dando voltas e mais voltas em torno do seu corpo numa sequência sem começo nem fim. (p. 172-3)

Como disse anteriormente, se a ciranda sugere o movimento, a pedra se impõe como o elemento intransigente dessa equação — aquilo que resiste à mudança, que permanece mesmo quando tudo ao redor gira. Virgínia passa boa parte da narrativa tentando escapar do que a define: a infância solitária, a sensação de rejeição, o trauma da mãe doente. Ela busca se reinventar ao longo da vida, tentando fazer parte de uma ciranda que, descobre depois, nunca lhe pertenceu. No entanto, a pedra simboliza a permanência do passado, aquilo que, por mais que tente ser esquecido, continua a lançar sombras sobre o presente. Virgínia pode girar como a ciranda, mudar de casa, de ambiente, de relações, mas nunca poderá apagar completamente as marcas daquilo que viveu. O simbolismo da pedra sugere que há aspectos da identidade que são imutáveis, traços de nossa história que carregamos conosco, mesmo sem querer. Seu destino não é um caminho em linha reta, mas um eterno retorno a si mesma — uma luta contra aquilo que já está inscrito em sua trajetória.

O livro não tem grandes reviravoltas ou mistérios. Mas tem uma intensidade quase silenciosa, uma verdade que se impõe aos poucos. Lygia Fagundes Telles nos leva a uma história que é, ao mesmo tempo, uma reflexão sobre o passado e um olhar para o que somos no presente. Não há como julgar ninguém, porque todos, como Virgínia, têm suas falhas, suas dores e suas verdades que, por mais complexas que sejam, nos fazem quem somos. As pessoas são como grandes mosaicos de fragmentos, inseguranças e falhas. E ela, por fim, compreende que, ao olhar para o outro, só consegue ver mais de si mesma. Os excessos que os outros cometiam e que incomodavam tanto a protagonista não eram nada mais, nada menos do que uma manifestação de tudo aquilo que lhe faltava.


Ane Xavier

Estudante de Jornalismo e Ciência Política, apaixonada por comunicação e sempre com um livro em mãos. Também fala sobre leituras no instagram @booksbyane.

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